A esperança de que o mundo desse um passo em direção ao apaziguamento em 2023 acabou frustrada. A expectativa de um eventual cessar-fogo na Ucrânia deu lugar ao horror provocado pela eclosão de uma nova guerra marcada pela morte e pelo sequestro de civis – ações registradas em vídeos que circularam pelo mundo e provocaram ondas de indignação.
O atentado cometido pela organização terrorista palestina Hamas contra homens e mulheres, crianças, adultos e idosos judeus em 7 de outubro deflagrou uma reação israelense que culminou na invasão da Faixa de Gaza, no aumento do número de vítimas e em mais uma fonte de instabilidade geopolítica que chegou a provocar temores de que o conflito transbordasse para outros países. A ameaça de transformação em uma contenda regional ou global não se confirmou até o momento, mas elevou o grau de tensão em um mundo já intranquilo. Especialistas avaliam ser grande o risco das disputas nos territórios ucraniano e palestino se prolongarem em 2024, que terá como novo fator relevante a eleição presidencial norte-americana.
Nas primeiras horas da manhã de 7 de outubro, extremistas palestinos cruzaram a fronteira por terra e por ar, presos a parapentes, enquanto barragens de foguetes riscavam o céu israelense. Mataram soldados e cidadãos comuns, sem poupar crianças ou idosos, e sequestraram mais de 200 pessoas. Boa parte dos ataques foi filmada pelos próprios agressores e por testemunhas da barbárie – como participantes de uma rave que se tornou um dos focos da violência dos terroristas. Três vítimas que estavam nessa festa eram brasileiros, incluindo o gaúcho Ranani Glazer, de 24 anos.
Entre as razões cogitadas para a ação do grupo palestino, que não aceita a existência de um Estado judaico, está um recente esforço de aproximação entre Israel e a Arábia Saudita. Patrocinado pelos Estados Unidos, um eventual acordo entre as maiores potências do Oriente Médio poderia isolar o Hamas e o Irã – adversário local dos sauditas. Ao forçar uma resposta de grandes proporções por parte dos israelenses, os radicais poderiam minar o acordo com os árabes.
A reação de Israel, com o objetivo de erradicar o Hamas, também acabou provocando mortes de milhares civis. Isso fez com que o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, classificasse a ação israelense como uma “punição coletiva” contra os palestinos. O ministro das Relações Exteriores de Israel, Eli Cohen, argumentou que seu país estava exercendo o direito de autodefesa e que faz parte da estratégia dos extremistas se esconder em meio à população civil e, assim, colocá-la sob risco.
Na presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU ao longo do mês de outubro, o Brasil tentou emplacar, sem sucesso, uma resolução que interrompesse temporariamente os ataques e facilitasse a entrada de auxílio humanitário. O acordo para um cessar-fogo foi alcançado somente no final de novembro. A medida trouxe algum alívio ao Oriente Médio, mas, além de ser temporário, não mostrou-se suficiente para eliminar as incertezas sobre o futuro da região – a exemplo das dúvidas que ainda pairam sobre o destino da Ucrânia conflagrada.
– Temos uma grande dificuldade de previsão em um cenário internacional de instabilidade crescente, em meio a uma disputa hegemônica global (entre Estados Unidos e China). É muito difícil a gente pensar o que vai ser este próximo ano, com esses conflitos acontecendo ao mesmo tempo e sem muita clareza sobre os movimentos das grandes potências. Mas, a menos que algum dado novo apareça no tabuleiro, podemos esperar que 2024 desponte com a manutenção dessas duas guerras – avalia o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Luiz Reis da Silva.
O mundo já vinha dedicando menos atenção ao conflito na Ucrânia, o que motivara súplicas do presidente Volodimir Zelensky, quando eclodiu a crise no Oriente Médio.
– A guerra na Ucrânia já vinha mostrando sinais de cansaço e acabou eclipsada pelo conflito entre Israel e Hamas ao desviar foco e recursos dos Estados Unidos e do Ocidente, o que dá mais margem de manobra para o fortalecimento das posições russas. Zelensky já vinha demonstrando crescente irritação com a falta de apoio inclusive material, militar, mas também político. A tendência, ainda no inverno (do Hemisfério Norte), é a Rússia fortalecer suas posições na região – acredita Silva.
O cenário internacional deverá ser marcado, no próximo ano, pela realização das eleições presidenciais norte-americanas. O resultado da votação pode alterar o rumo da relação com a China e o futuro da guerra na Ucrânia, além da possibilidade de revigorar a extrema direita em nível internacional caso o republicano Donald Trump retorne ao salão oval da Casa Branca.
Um dos desdobramentos globais de uma eventual troca de poder nos Estados Unidos, com a saída do atual presidente democrata Joe Biden em favor de um novo mandato de Trump, seria o fortalecimento da Rússia no conflito com a Ucrânia. Enquanto Biden se esforça para seguir despejando bilhões de dólares em ajuda militar aos ucranianos ao lado dos parceiros vinculados à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), acredita-se que o republicano reassumiria uma posição de maior neutralidade diante do conflito.
– A eleição nos Estados Unidos será um dos grandes temas do ano, desde as primárias até a eleição propriamente dita, mais para o final do ano. O Trump vem forte, e o Biden também está jogando pesado para ser o candidato democrata, mesmo que não seja o mais competitivo. Essa eleição terá um impacto muito especial na guerra da Ucrânia. Em caso de vitória de Trump, mesmo que ele só assuma o governo no ano seguinte, isso mudaria o rumo da guerra e deixaria Vladimir Putin muito fortalecido. A dinâmica mundial mudaria muito – aposta o pesquisador do Núcleo de Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Leonardo Paz Neves.
A relação com os chineses é outro ponto que poderia sofrer alterações. Trump já deu declarações classificando a China como uma nação “inimiga”, rompeu relações com a Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a pandemia por considerar que a entidade era manipulada pelos orientais e criticou antecessores por serem “fracos demais” com Pequim.
– Por outro lado, depois de um forte distanciamento entre Estados Unidos e China nos últimos anos, em 2023 tivemos um encontro do Biden com o Xi Jinping. Houve disposição para discutirem temas militares e para as duas forças se entenderem melhor. Não chega a ser uma relação de confiança, mas diminui a margem de erro na relação entre os dois países, como o risco de o navio de um derrubar o avião de outro, esse tipo de coisa – complementa Neves.
Na América do Sul, um dos focos de atenção será o desempenho do novo presidente argentino, Javier Milei, à frente da Casa Rosada.
O representante da extrema direita argentina amenizou o tom de suas declarações após a confirmação do resultado, mas ainda pairam dúvidas sobre o quanto de suas polêmicas promessas de campanha ele conseguirá levar adiante – o que inclui o fim do Banco Central argentino e a dolarização da economia.
E 2024,
- Haverá eleições em 81 países, conforme a ONU.
- O Brasil terá apenas os pleitos municipais, mas diversas nações, entre as quais os Estados Unidos, elegerão seus próximos presidentes neste ano que está começando.
- Para a Unesco, a eleição norte-americana é desafiadora no que diz respeito à atuação das plataformas digitais. Vislumbrando 2024, no fim de 2023 o órgão elaborou um plano de ação para regulamentar essas plataformas, com o objetivo de frear a propagação de desinformação e dos discursos de ódio.
- Os Estados Unidos elegerão seu novo presidente no dia 5 de novembro, após meses de prévias e convenções partidárias nos Estados.