Até pouco tempo atrás era quase unânime, entre os políticos argentinos, a condenação à ditadura militar que governou o país entre 1976 e 1983. Não mais. O presidente recém-eleito Javier Milei, economista que se define ideologicamente como "anarcocapitalista", minimiza o papel do regime autoritário fardado, põe em dúvida o número oficial de mortos no período e diz que o país viveu uma guerra em que forças de segurança reagiram ao terrorismo peronista e marxista.
Eleita vice-presidente na chapa de Milei, a advogada e deputada federal Victoria Villarruel vai além e promete revisar a atual política de memória e direitos humanos do país.
No foco, estão as indenizações pagas a milhares de vítimas da repressão provocada pelo Estado durante o regime. O curioso nisso tudo é que uma das revisões pode atingir uma das mais importantes apoiadoras da dupla: a ex-candidata da direita moderada, Patricia Bullrich, que ficou em terceiro lugar no primeiro turno.
É que Patricia, na juventude, integrou os quadros da organização Juventude Peronista e, inclusive, tinha um cunhado, Rodolfo Galimberti, que era dirigente da organização guerrilheira peronista Montoneros. Com a redemocratização, Patricia abrandou o discurso, guinou ideologicamente da esquerda para a direita e foi ministra da Segurança Pública no governo de Mauricio Macri (2015-2019). Hoje, mantém boa relação com as forças de segurança e os militares.
Mesmo que Patricia tenha adotado discurso conservador, Milei a chamou de "montonera assassina", em entrevista no primeiro turno. Ele a acusou de colocar "bombas em jardins de infância" na década de 70 e prometeu que revisaria a indenização recebida por ela. Patricia disse que entraria na Justiça contra Milei pelas falas dele.
A controvérsia foi deixada de lado quando tanto Milei como Patricia perderam o primeiro turno nas eleições para o peronista Sergio Massa. Mesmo contrariada, Patricia declarou apoio a Milei no segundo turno, por acreditar que ele conseguiria barrar "a decadência na qual a Argentina foi mergulhada pelo kirchnerismo". A aliança entre os ex-desafetos deu certo e Milei foi eleito no último domingo.
Vice quer reparar vítimas das guerrilhas
Mais agressiva que Milei em relação à revisão das indenizações recebidas por vítimas da ditadura é sua vice-presidente eleita, Victoria Villarruel. Filha, sobrinha e neta de militares, Vicky (como a chamam seus apoiadores) criou em 2006 o Centro de Estudos Legais sobre o Terrorismo e suas Vítimas (Celtyv). A meta é buscar reparação para familiares de pessoas mortas pelos grupos esquerdistas Montoneros e Exército Revolucionário do Povo (ERP) - organizações guerrilheiras argentinas que agiram antes e depois do golpe militar.
Vicky também visitou na prisão o general Jorge Rafael Videla, morto em 2013. Ele foi o primeiro presidente da ditadura militar argentina inaugurada em 1976, período de maior repressão e com maior número de mortos ou desaparecidos. Victoria alega que foi entrevistar o militar porque ele é peça fundamental para livros que ela escreveu sobre os anos 1970.
Milei é um novato em política. A Victoria (Villaruel) é ideológica e representa todo um setor nostálgico da ditadura.
JAIR KRISCHKE
Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH-RS)
A vice-presidente eleita não chega a negar que os militares cometeram crimes, mas minimiza o tamanho e a quantidade deles. Vicky alega que era uma guerra, na qual as forças do Estado cometeram excessos, mas também os "terroristas dos Montoneros (guerrilha peronista) e do ERP (guerrilha marxista) mataram gente, colocaram bombas e cometeram crimes contra a humanidade".
O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos-RS, Jair Krischke, um especialista em regimes militares sul-americanos, considera Victoria mais engajada que Milei.
- Milei é um novato em política. A Victoria é ideológica e representa todo um setor nostálgico da ditadura - justifica Krischke.
As controvérsias em jogo
1) Número de vítimas
Segundo entidades de direitos humanos, o regime militar da Argentina deixou 30 mil mortos e desaparecidos. Um dos que repete a cifra é o escritor e ativista Adolfo Pérez Esquivel, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1980, justamente com denúncias de crimes cometidos pela ditadura do país.
O mesmo número é citado por núcleos de familiares de vítimas da ditadura, como as Mães e Avós da Praça de Maio. Seria uma conta aproximada a partir de relatórios feitos ainda durante o regime militar. Um relatório das Forças Armadas enviado em 1978 a militares chilenos que serviam à ditadura de Augusto Pinochet fala em ao menos 22 mil mortos na campanha contra as guerrilhas. Outro documento, do mesmo ano e produzido pela embaixada dos Estados Unidos na Argentina, fala em ao menos 15 mil vítimas.
Já o presidente eleito e sua vice asseguram que o número de mortos e desaparecidos é 8.753. Esse número se assemelha ao da Comissão Nacional do Desaparecimento de Pessoas, que elencou, em setembro de 1984, nomes e fatos de 8,9 mil pessoas desaparecidas ou mortas.
O gaúcho Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (MJDH-RS), esteve na Argentina em 1984 para ajudar no levantamento publicado no livro Nunca Más. Ele tem uma hipótese sobre a diferença:
- Até hoje tem muita gente com medo, que jamais depôs a respeito do sumiço de seus parentes.
2) Indenização de vítimas das guerrilhas
Milei e sua vice querem reparações financeiras para vítimas das guerrilhas de esquerda na Argentina. Vicky afirma que existem 1.094 “vítimas do terrorismo dos Montoneros e ERP que jamais foram reconhecidas pelo Estado”.
Os Montoneros eram uma tendência dentro do peronismo (movimento nacionalista criado pelo ex-presidente argentino Juan Domingo Perón). Já o ERP era de inspiração marxista. Ambas cometeram sequestros e atentados.
As entidades de direitos humanos não costumam negar os atentados cometidos pelas guerrilhas, mas via de regra se posicionam contra indenização a familiares de suas vítimas. Algumas são contra qualquer tipo de reparação financeira, a qualquer dos lados do conflito (como já se posicionou a entidade Mães da Praça de Maio).
3) Revisão de reparações
Milei e sua vice querem revisar as reparações financeiras feitas a vítimas da ditadura. Embasam seus argumentos em investigações feitas pelo jornalista e escritor argentino José D’Angelo, que redigiu dois livros com pelo menos 30 casos de pessoas indenizadas que, segundo ele, não teriam direito ao dinheiro recebido. Dentre eles, familiares de guerrilheiros que teriam sido mortos pela própria guerrilha (como “justiçamento de traidores da causa”) e uruguaios que teriam recebido duplamente, do governo uruguaio e do argentino.
Defensores dos direitos humanos admitem que ocorreram alguns casos forjados de vítimas (inclusive um falso familiar de torturado), mas seriam parcela ínfima em um universo de 30 mil mortos e desaparecidos.
4) Valores das indenizações
Milei e sua vice consideram também exagerados os valores pagos até agora com indenizações. Conforme estimativa da Secretaria de Direitos Humanos do governo argentino, fornecida ao Judiciário, em 32 anos foram desembolsados cerca de US$ 3,5 bilhões em indenizações a vítimas da ditadura (cerca de R$ 17,5 bilhões). Desde 1991, foram indenizadas 7.996 pessoas.
As indenizações estão previstas em seis leis nacionais argentinas, promulgadas entre 1991 e 2013. Beneficiam familiares de mortos e desaparecidos, torturados, exilados e, também, crianças cujos pais foram mortos pela ditadura militar. Para ser indenizada, a suposta vítima tem de mostrar documentos e testemunhos que provem a violência sofrida por ela ou seus familiares. O caso é analisado por uma comissão governamental, da Secretaria de Direitos Humanos da Nação.