A nova crise no Oriente Médio, com o ataque terrorista do grupo muçulmano Hamas a civis israelenses e a retaliação de Israel via bombardeios de cidades palestinas, é um novo espaço na disputa entre as maiores potências do planeta. Estados Unidos, Rússia e China se posicionam estrategicamente para influenciar nessa conjuntura. Os dois primeiros, também no plano militar. Os chineses, no comercial.
Vejas os interesses e a abrangência das alianças de cada um desses atores no complicado cenário do Oriente Médio:
ESTADOS UNIDOS
São os maiores aliados de Israel, no planeta. Nos primeiros quatro dias de crise, o presidente norte-americano Joe Biden falou ao telefone três vezes com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ordenou o envio do mais moderno porta-aviões da marinha americana (o Gerald Ford) à região, autorizou reforços para o Domo de Ferro (escudo antiaéreo israelense), remeteu um navio recheado de munições que chegou ao território israelense três dias após os atentados terroristas e despachou seu secretário de Estado, Antony Blinken, a Tel Aviv. O presidente americano adiantou também que pedirá ao Congresso americano a aprovação de um pacote de auxílio militar a Israel. Por que tudo isso?
Não é especificamente pelos 14 norte-americanos mortos na ação do Hamas e os 20 reféns dos EUA ainda sob controle dos militantes palestinos. Os EUA apoiam Israel desde antes de sua fundação. É o país do mundo que mais recebe recursos dos EUA, conforme reportagem recente da BBC. Uma ajuda de US$ 260 bilhões (o equivalente a mais de R$1,3 trilhão) entre 1946 e 2023, segundo um relatório do Congresso americano. Mais da metade desse montante foi designado como auxílio militar.
Membro permanente do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA usaram repetidamente seu poder de veto para barrar admoestações ou sanções a Israel por suas sucessivas ocupações ao território autônomo palestino. Foram mais de 80 vetos desde 1948, calcula Stephen Zunes, professor e fundador do Centro de Estudos do Oriente Médio da Universidade de San Francisco, na Califórnia. Quais as razões?
Os EUA tem a maior população judaica fora de Israel. São cerca de 6 milhões de judeus em território norte-americano, enquanto em Israel vivem 6,5 milhões. Há também uma empatia no assunto terrorismo. Os Estados Unidos vivenciaram mais de 3mil mortos nos atos terroristas de 11 de setembro de 2001, os israelenses vivenciam drama similar agora (respeitada a proporção de tamanho entre os dois países). Ambos ataques praticados por organizações muçulmanas sunitas.
Essa comunhão também se estende a outros assuntos, que não a questão palestina. No caso da Síria, por exemplo, os EUA apoiaram grupos guerrilheiros que tentavam derrubar o regime do presidente autoritário Bashar Al-Assad, enquanto israelenses seguidamente bombardeavam posições do governo sírio.
O apoio a Israel e a luta antiterrorista são dos poucos assuntos que unem Democratas (atual governo) e Republicanos (oposição), nos EUA. E esse apoio se traduz em negociações para que os israelenses normalizem as relações com alguns vizinhos árabes. É o caso da Arábia Saudita, forte aliada militar norte-americana contra o fundamentalismo islâmico, e outros países árabes da região, como Egito, Jordânia e emirados variados do Golfo Pérsico. Todos recebem apoio na sua rivalidade com o Irã e a Síria, vistos como maiores inimigos dos Estados Unidos no Oriente Médio. O fortalecimento das relações dos EUA com esses países também ocorre no plano econômico, com fortalecimento de missões diplomáticas e comerciais - o que também se estende a Israel.
Ao viabilizar acordos entre países árabes e os israelenses, os EUA também tentam evitar a expansão comercial chinesa no Oriente Médio, já que no plano militar os chineses não têm atuado na região.
RÚSSIA
As relações da Rússia com Israel são ambíguas. A posição do governo de Vladimir Putin no Oriente Médio é de estreita colaboração com alguns dos maiores inimigos dos israelenses, como a Síria e o Irã. Inclusive os russos têm duas bases aeronavais em território sírio. Foram aliados dos sírios na guerra deles contra a organização terrorista Estado Islâmico e também contra outras guerrilhas muçulmanas. Ajudaram a salvar o regime de Bashar Al-Assad. Os russos adotam, na geopolítica, uma posição pró-árabe, em contraposição ao apoio total dos EUA a Israel.
Nem sempre foi assim. Nos tempos em que o socialismo imperava na Rússia, a então União Soviética apoiou a criação de Israel, com ajuda financeira que durou mais de duas décadas. O apoio era inclusive ideológico, em alguns aspectos, tanto que os kibutzes israelenses (fazendas comunitárias) são muito similares aos kolkhozes soviéticos (fazendas coletivas).
A situação mudou ao longo do tempo. Um primeiro distanciamento aconteceu em 1956, quando Israel ocupou territórios egípcios (na chamada crise do Canal de Suez). Tanto EUA quanto Rússia se posicionaram contra a ação. Gradualmente, desde então, os governos russos têm se aproximado dos inimigos árabes dos israelenses. É o caso da Líbia, Iraque, Síria e Egito, que durante décadas foram abastecidas por armamento russo e sofreram influência ideológica, socialista, de Moscou.
Na década de 1990, com o fim do regime soviético e a adesão da Rússia à economia de mercado, ocorreu a migração de mais de um milhão de judeus provenientes de antigas repúblicas soviéticas para Israel. Eles hoje formam núcleo populacional importante. Mesmo assim, as parcerias russas com os árabes permaneceram, em detrimento das com os israelenses. O regime de Putin, por exemplo, firmou alianças com a Síria (inclusive com envio de tropas na guerra civil daquele país) e com o Irã, hoje os países mais hostis a Israel (e também hostilizados pelos israelenses).
O envio de armamento russo acaba, indiretamente, por fortalecer as guerrilhas islâmicas que combatem Israel, como o Hamas (palestino sunita) e o Hezbollah (libanês xiita). A intermediação na entrada do arsenal é feita pelo Irã e pela Síria.
Vídeos na internet mostram os primeiros terroristas do Hamas ultrapassando os muros da Faixa de Gaza para ingressar em Israel e alguns militantes mascarados falando em russo. Isso despertou a suspeita de que mercenários russos teriam treinado os terroristas muçulmanos. Não seria espantoso, já que na guerra civil síria, o grupo Wagner (milícia privada russa) combateu junto e deu instrução aos militantes do Hezbollah, apoiadores do regime do ditador Assad.
Formalmente, Israel desconsidera possível envolvimento russo nos ataques da semana passada. O embaixador de Israel em Moscou, Alexander Ben Zvi, disse à mídia israelense que não acredita em envolvimento do governo russo, sequer no envio de armas ou de equipes de treinamento. Mas fato é que a Rússia nunca declarou o Hamas ou o Hezbollah como grupos terroristas. Delegações do Hamas foram recebidas em Moscou em 2022 e 2023.
Mais provável é que Putin tente desempenhar papel na intermediação da paz. Numa visita a Moscou nesta semana, o primeiro-ministro do Iraque fez um apelo ao presidente russo para "anunciar uma iniciativa para um verdadeiro cessar-fogo" na região, conforme revelou a rede de TV Al Jazeera. A Rússia até apresentou uma proposta de "cessar-fogo humanitário" durante o encontro do Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) na última semana, mas a proposta não foi aceita pelos integrantes e a reunião, presidida pelo Brasil, terminou em impasse.
Em paralelo, o Kremlin culpa os Estados Unidos pela tentativa de "formar hegemonia no Oriente Médio, sem cuidar das aspirações legítimas dos palestinos para terem seu próprio país".
CHINA
O envolvimento chinês no Oriente Médio equilibra acenos a Israel e ao mundo árabe. O objetivo é claramente comercial, já que não há notícia de envolvimento direto chinês em algum ato bélico na região. Historicamente a China respalda os esforços de emancipação palestina, mas mantém relações diplomáticas e econômicas com Israel. Inclusive o porto israelense de Haifa é administrado por uma empresa de Xangai. Até por essa pluralidade de interesses, os chineses se oferecem para mediar o mais recente impasse militar na região.
As declarações do Ministério das Relações Exteriores da China são um primor de equilíbrio. Enfatizam a necessidade de ambas as partes cessarem as hostilidades para evitar baixas civis, embora sem qualificar o grupo Hamas como terrorista. Mas setores da mídia estatal chinesa atribuem aos EUA a responsabilidade na escalada macro do conflito, pelo fato de nunca terem cobrado dos israelenses a promessa para um acordo que viabilize a Palestina como um país.
As alfinetadas nos EUA e a neutralidade em relação a Israel parecem sob medida para os objetivos chineses. A China mantém relações crescentes com vários países do Oriente Médio e inclusive com Israel. Por isso, equilíbrio nas colocações diplomáticas é imprescindível. Além de tudo, direitos humanos não é o forte do governo chinês, então é difícil cobrar respeito a eles por parte de outras nações.
É importante ressaltar que a China mantém importantes relações com o Irã, o que pode resultar em riscos para Israel. Os dois países mantêm parcerias comerciais e no campo militar. A salientar, também, que a China é um dos maiores importadores de petróleo bruto do Irã, enquanto o Irã é um ativo importante para os chineses no contraponto aos Estados Unidos nessa parte do mundo.
A China, aliás, tenta ser fiadora da reconciliação entre o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita. É provável que tente o mesmo em relação ao conflito entre Israel e os palestinos. Para isso, contaria com o Egito, também parceiro chinês de longa data.
Todo esse esforço diplomático, a longo prazo, faz parte da estratégia para implementar o que vem sendo chamado Nova Rota da Seda, lançada pelo presidente chinês Xi Jinping: a perspectiva de firmar US$ 2 trilhões (mais de R$ 10 trilhões em contratos) com países num caminho que une o Extremo Oriente ao Ocidente, passando pela Ásia Central e Oriente Médio. O nome é inspirado num roteiro de caravanas chinesas que existia desde o século II Antes de Cristo.
O plano comercial chinês não tem seda como perspectiva. Ele consiste na formação de uma grande rede de infraestrutura (com modais de transporte como portos, rodovias e ferrovias) para conectar continentes para o escoamento de produtos. Tudo construído por chineses, óbvio. E o Oriente Médio é parte nevrálgica no projeto. Por isso, patrocinar a estabilidade na região é, também, viabilizar esse grande negócio.