Mais longevo primeiro-ministro da existência de Israel, Benjamin Netanyahu, o Bibi, vive um momento dicotômico. Por um lado, após o histórico e brutal ataque terrorista do Hamas, ele lidera um governo de união nacional para vencer a guerra. Diferenças políticas foram postas de lado ante a ameaça do Hamas e o risco de outros adversários, como o Hezbollah, arregaçarem as mangas. Um governo de emergência e um gabinete de guerra foram criados com a adesão de parte da oposição, como o militar e o ex-primeiro-ministro Benny Gantz.
Em outro vértice, Bibi está mais pressionado do que nunca, amargando impopularidade crescente da sua coalizão de extrema-direita, acusada de ter falhado na segurança e de ter dividido o país ao dar início a um processo de enfraquecimento do Judiciário, cerceamento de minorias e avanço de assentamentos de colonos israelenses na Cisjordânia, território ocupados por árabes governados pela Autoridade Nacional Palestina.
Enquanto Israel marcha em contragolpe, uma das principais questões a ser respondida é se Netanyahu sairá fortalecido da guerra, amalgamado como o líder capaz de proteger o Estado de Israel, ou se a sua aliança ortodoxo-nacionalista chegou ao fim da linha, responsabilizada junto à opinião pública pela morte de centenas de judeus nas mãos do Hamas.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, é necessário pontuar que a unidade nacional na guerra é fato consumado. Um dos exemplos mencionados é o dos militares reservistas que estavam se negando a servir antes do início da guerra, em protesto à reforma do Judiciário aprovada por Bibi, o que deu poderes ao governo e ao Parlamento, chamado de Knesset, de reverter decisões da Suprema Corte.
Críticos entendem que a medida solapa a democracia e concentra poderes demasiados nas mãos do primeiro-ministro. Os pilotos, considerados a elite das Forças Armadas de Israel, estiveram entre os que se recusaram a servir, juntando-se aos protestos da oposição. O governo os chamava de traidores. Após o ataque do Hamas, os pilotos abandonaram a postura reticente e aderiram à contraofensiva de guerra.
— A discussão sobre o Judiciário, os assentamentos e o governo de extrema-direita estão em segundo plano. Agora, é o conflito com o Hamas e o perigo de uma ação do Hezbollah contra Israel. Não sabemos ainda qual a ação, mas é consenso de que é necessária uma ação. E esse governo, com grupos da oposição, vai tomar uma ação apoiada pelo povo — avalia Ilton Gitz, historiador, geógrafo e professor de cultura judaica.
O advogado e membro da comunidade judaica Marcos Bliacheris afirma que o impacto do ataque do Hamas foi “muito grande”, capaz de reavivar o Holocausto, mais triste memória dos judeus. O trauma atua como um ímã no momento de crise, trazendo os divergentes para um agrupamento, ainda que pontual.
— Yuval Harari (autor do best seller Sapiens: Uma breve história da humanidade) é hoje uma das principais vozes da oposição. Ele disse: ‘Depois da guerra, vamos acertar as contas com Bibi’ — destaca Bliacheris.
Israel tem vivido instabilidades políticas e governos de curta maioria há anos. Bibi está acossado por processos judiciais em que responde por corrupção. E o país não passou imune à onda de extrema-direita no mundo. Essa gênese produziu as críticas que Netanyahu já colhia antes da guerra. Algo que, após o conflito, pode ser ampliado.
— Quando Bibi assumiu novamente a liderança do país (em dezembro de 2022), já estava acuado devido às graves acusações que pesavam contra ele. A sobrevivência política dependia de uma aliança com os setores mais extremistas da direita israelense e de abraçar suas pautas e visão de mundo. Ele deu início a um projeto de descredibilização e enfraquecimento do Judiciário com sua base extremista no Parlamento. Isso o colocou como refém dessa base e suas diretrizes, bastante hostis quanto ao entendimento com lideranças palestinas — afirma Iair Grinschpun, professor licenciado em História pela UFRGS.
Entre especialistas, a avaliação é de que Bibi, um hábil político da direita tradicional, ficou manietado por radicais como os ministros Itamar Ben-Gvir (Segurança Nacional) e Bezalel Smotrich (Finanças). Se o primeiro-ministro indicava desejo de tirar o pé do acelerador, a dupla demonstrava poder e ameaçava ruir a maioria do governo. Bibi, para segurar-se no poder, mantinha a rota radical.
Bliacheris destaca que, além da reforma do Judiciário, a coalizão ortodoxo-nacionalista de Bibi procurou avançar sobre minorias, incluindo a comunidade LGBT+ e os árabes israelenses.
— É todo um pacote de restrição de direitos, inspirado nas legislações da Hungria e da Polônia — diz Bliacheris.
Outro aspecto de desgaste foi a política do governo de patrocinar uma ideia expansionista, com o avanço dos assentamentos israelenses na Cisjordânia, região em que árabes vivem sob a administração da Autoridade Nacional Palestina. Isso elevou tensões e deslocou esforços militares israelenses para essa região, possivelmente deixando a Faixa de Gaza menos coberta, por onde o Hamas atacou.
— Os ministros ortodoxos-nacionalistas inflamaram os colonos israelenses da Cisjordânia, que passaram a radicalizar o discurso e agir com violência. Isso criou focos de tensão junto aos palestinos. Se deu muita atenção àquela região, em detrimento a Gaza — avalia Bliacheris.
Todo esse caldo levou a dezenas de semanas consecutivas em que multidões se reuniram nas ruas de Israel para protestar contra Netanyahu, incluindo setores militares. Existe certo consenso de que o Hamas, percebendo profunda divisão social e distrações, avaliou o momento como propício para a ofensiva.
Para além de todos os fatores pretéritos, o ataque terrorista do Hamas expôs uma fragilidade no sistema de proteção israelense sob Bibi. E a segurança do povo israelense sempre esteve entre as principais retóricas de sustentação do político, há quase 16 anos na função de primeiro-ministro, somando as três passagens pelo cargo.
— Não vejo como se poderia fazer um ataque tão letal e brutal sem nenhuma falha no sistema de segurança e na Inteligência. Segurança é um dos aspectos mais sensíveis na sociedade israelense. O que está acontecendo abalaria qualquer governo. Com Bibi, não será diferente. Ainda que Israel consolide uma vitória no plano militar, nunca houve um ataque tão letal e grandioso ao território. Isso pesa demais na opinião pública — afirma Grinschpun.
A avaliação predominante é de que a crise cobrará um preço caro de Netanyahu, mas, dadas suas habilidades políticas, é terreno movediço qualquer tentativa de cravar o futuro.
— É impossível dizer se o governo dele cairá ou não após esse conflito. O certo é que haverá um desgaste e não será pequeno — diz Grinschpun.
Bliacheris também é cauteloso, mas destaca características fundamentais para a manutenção de Bibi no poder por longo tempo: “inteligência e dom de sobrevivência inato”. Ao mesmo tempo, ele salienta sinais negativos para a imagem do primeiro-ministro: — A realidade do Oriente Médio é muito dinâmica, mas, nas pesquisas de opinião que saíram, a maioria dos israelenses avalia que houve falha de segurança e que Bibi não está sabendo conduzir a reação.
Gitz, ao pensar o futuro, estabelece paradigma com o passado: ele recorda a guerra do Yom Kippur, em 1973, quando a aliança árabe entre Egito e Síria lançou ataque surpresa sobre Israel, à época liderado pela primeira-ministra Golda Meir.
— Acredito que Israel vai conseguir solucionar, vai sobreviver, e, mais tarde, a sociedade vai cobrar o preço. Isso aconteceu em 73, quando os trabalhistas estavam no poder e todo o povo se uniu durante o conflito. Agora, como em 73, o povo e o Exército estão unidos. Mas, logo após o conflito de 73, caiu o governo de Golda Meir e assumiu um de oposição. Houve uma falha (na segurança) que a população conseguiu enxergar. Isso vai ser cobrado de Bibi — diz Gitz.