Yonatan, oito anos, e Noa, 10, sabem que, em Israel, há o verão, há o inverno e há... a estação das bombas.
É assim que eles definem, para os pais, Leon Chrempach, 45 anos, e Geruza Schneider, 39, os dias em que suas rotinas escolares, brincadeiras pelo pátio de casa e temporadas de desenhos em frente à TV é interrompida pelas sirenes antiaéreas, o estrondo das explosões e as corridas para o abrigo. A estação das bombas, eles sabem, costuma durar alguns dias. Passa. Sempre passa. Mas também sempre volta.
A família do Rio Grande do Sul mora no kibutz Hatzerim, a 30 quilômetros da Faixa de Gaza. No fatídico 7 de outubro, enquanto os foguetes caíam sobre o sul de Israel, Yoanatan, Noa, Leon e Geruza esconderam-se, como de hábito na estação das bombas, no "quarto seguro". O cômodo, com paredes de concreto armado, porta e janelas de ferro, é literalmente um quarto - o de Yonatan.
Decorado com adesivos de super-heróis, é a peça da casa que abriga toda a família quando as sirenes soam. Na corrida de menos de um minuto para se protegerem, eles costumam levar junto a cadela Tequila, xodó de Noa. Ninguém fica para trás.
A família costuma permanecer ali por minutos ou horas, o quanto for necessário até a ameaça cessar. Naquele sábado, entretanto, quando as sirenes silenciaram e a família se preparava para voltar à rotina, começaram a pipocar nos celulares de Geruza e Leon informações ainda mais dramáticas. Dos kibutzim vizinhos, os vídeos e áudios em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagens começavam a compor um cenário devastador: aquele não havia sido um ataque como os anteriores, com foguetes em grande parte repelidos pelo Domo de Ferro, o sistema antimísseis israelense. A ameaça não vinha apenas pelo ar. Dessa vez, os terroristas do Hamas haviam conseguido empreender algo impensável para os moradores das comunidades agrícolas do sul de Israel. Tinham penetrado no território israelense. Chegaram às casas, abriram por fora os bunkers e os quartos seguros e iniciaram um massacre. Geruza sente um misto de tristeza e de indignação ao lembrar que gestantes foram mortas, mas, antes, tiveram fetos arrancados de suas barrigas.
Assista ao vídeo sobre o dia a dia da família
— Não pouparam ninguém. Houve gente que só sobreviveu porque se escondeu debaixo de outros corpos — afirma.
Os terroristas não alcançaram o kibutz Hatzerim. Mas a família gaúcha perdeu amigos e conhecidos em Be'eri e Kfar Aza, mais próximos da cerca que separa Israel de Gaza. Geruza e Leon acreditam que os vizinhos atuaram, bravamente, como força de contenção. Barraram os terroristas com suas vidas. Não fosse isso, o Hamas poderia ter chegado a Hatzerim.
A invasão do dia 7 faz Geruza acreditar que os israelenses terão de ressignificar a palavra lar – como país, mas também em suas vidas particulares, no dia a dia. Ambos foram violados.
— Não existe nenhuma pessoa nesse país que não tenha de refazer o conceito de lar. A gente foi pego de surpresa. Não há pai ou mãe que não esteja traumatizado, que teve de pegar suas crianças correndo e botar nesse quarto seguro — afirma.
Preparados para resistir a ataques aéreos, os bunkers ou quartos seguros normalmente têm portas que possibilitam abertura por fora. A ideia é que, se a estrutura da casa desabar, equipes de socorro possam chegar até esses locais e efetuar resgates. Essas estruturas, até agora, não eram projetadas para invasões por terra, como a que ocorreu. Isso seria impensável. Mas aconteceu. Os homens do Hamas chegaram aos kibutzim tocando fogo nas casas e obrigando os moradores a fugir. Quando eles deixavam as residências, os terroristas abriam fogo. Em alguns ataques, abriram os quartos seguros e executaram um a um as vítimas.
Com cerca de mil moradores (entre 40 e 50 brasileiros), o Hatzerim foi fundado em 1946, dois anos antes da criação do Estado de Israel. Fica a oeste da cidade de Beersheva, no deserto do Neguev. Kibutz vem do hebraico e quer dizer "reunião" ou "grupo coletivo". A palavra dá nome às comunidades israelenses administradas coletivamente, que foram fundamentais para a consolidação de Israel enquanto Estado.
O Hatzerim, diz Leon, é muito parecido com Be'eri, onde mais de cem corpos foram encontrados desde sábado. Tanto que as administrações dos dois kibutzim volta e meia trocavam informações. A comunidade vizinha, na opinião de Leon, era como um exemplo para o Hatzerim.
— Sempre que realizavam alguma ação, um evento, íamos buscar com eles informações para entendermos como haviam conseguido — conta.
Leon e Geruza se conheceram em Porto Alegre, no movimento de jovens judeus Habonim Dror, no bairro Bom Fim, nos anos 1990. Adolescente, ele foi o primeiro a abrir a porta da organização, na Rua Felipe Camarão para Geruza, que estava curiosa em conhecer aquele trabalho. Ela logo se apaixonou pelos olhos verdes do rapaz. Começaram a namorar tempo depois. Leon veio para Israel com um grupo de amigos do Dror e conheceu o Hatzerim. Voltou para o Rio Grande do Sul com a decisão construir sua vida aqui. Lá se foram 22 anos. Geruza, chegou depois. Yonatan e Noa nasceram em Israel. Geruza, que é designer, se preparava para fazer o mestrado em Tel Aviv. Os planos foram adiados pela guerra. Leon, que é paramédico de formação, hoje é um dos administradores do Hatzerim.
Nos kibutzim, tudo é coletivo: o salário de cada morador vai para a caixinha da comunidade, e cada família recebe de acordo com o número de integrantes da casa. Os carros no estacionamento, estão disponíveis para todos. Basta fazer um registro em um computador, pegar a chave e sair.
— Aqui, em geral, é um paraíso. A vida muito tranquila no dia a dia. Agora, nesses dias, está todo mundo tenso: a gente não vê as pessoas, não sai de casa. Tem autorização para fazer atividades, dentro de bunkers — diz Leon.
Os encontros do grupo de escoteiros do qual Noa participa são realizados nesses dias em abrigos subterrâneos. Como reúnem grandes quantidades de crianças, é uma forma de evitar que tenham de correr para o abrigo quando as sirenes tocam. Já estão lá. As aulas regulares estão canceladas. Mas, mesmo em tempos de relativa paz, cada prédio escolar tem dois ou três abrigos para o caso de ameaça. Cada professor é orientado a levar sua turma a um deles. Assim, não há dispersão e ninguém melhor do que o profissional da sala de aula para contar, um a um, no meio do pânico, se todos estão abrigados.
Há vários abrigos subterrâneos, inclusive com equipamentos para filtrar o ar em caso de ataques com armas químicas.
— Aqui, é 95% perfeito — diz Geruza, referindo-se à qualidade de vida no kibutz. — Mas em cinco por cento, tem esse problema — pondera.
Um problema que, desde sábado, faz Geruza, a cada explosão e corrida para o abrigo, ouvir de novo a definição de Yoanatan e Noa:
— Nossa, começou de novo a estação dos mísseis.
Dessa vez, no entanto, a temporada que não respeita o calendário, a rotação da Terra ou as fases da Lua, promete, infelizmente, durar mais do que o habitual.