Há um ditado argentino que diz: "Yo no pateo perro muerto". A expressão, que no Brasil pode ser entendida como ato de covardia — metaforicamente, alguém que não perde tempo com um inimigo neutralizado —, pode ter outro significado para os hermanos. "Eu não chuto cachorro morto...", seguido do complemento: "... porque ele pode não estar realmente morto".
A analogia se encaixa na atual situação política no país vizinho, que chega neste domingo (27) à eleição presidencial imerso na maior crise econômica em quase duas décadas. Há quatro anos, a vitória de Mauricio Macri na Argentina parecia o golpe mortal no peronismo que reinou na Casa Rosada por 12 anos. Cristina Kirchner, que venceu nas urnas, em 2007, deixou a presidência em 2015 pelos fundos da Praça de Maio, em meio a denúncias de corrupção. Ao ser eleito, o empresário Macri, ex-presidente do Boca Juniors, prometia "pobreza zero", redução da máquina pública e consolidação da chamada onda azul de ascensão de novos governantes de centro-direita no continente. Macri, seus ministros, empresários locais e aliados de fora da Argentina, como o presidente Jair Bolsonaro, chutaram cachorro morto.
O peronismo, grupo político fundado nos anos 1950 por Juan Domino Perón, não estava neutralizado. E, neste domingo, a se confirmarem as pesquisas de intenção de voto, ele pode voltar à Casa Rosada pelas mãos de Alberto Fernández e da própria Cristina, hoje senadora.
Até 18 meses atrás, esse cenário era pouco imaginado. Com o peronismo dividido e a ex-presidente respondendo a uma dezena de processos de corrupção, Macri era favorito à reeleição. Em poucos meses, o peso se desvalorizou, o Produto Interno Bruto (PIB) caiu e a inflação disparou. Como um dramático tango, a economia argentina entrou em um processo recessivo, jogada a um cenário que remonta a 2001: pobreza nas ruas (5 milhões a mais do que há quatro anos), risco de novo corralito (o limite para saques de correntistas nos bancos) e o temor internacional da repetição de um calote na dívida externa. O governo recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI), pedindo empréstimo de US$ 57 bilhões. A economia não reagiu, e a popularidade do presidente despencou em parte devido ao consequente ajuste fiscal para honrar o compromisso com o órgão internacional.
— O macrismo apostou em dois focos: ir contra Cristina, chamando de corrupto o kirchnerismo, e as obras públicas, dizendo "estamos fazendo coisas que nunca foram feitas". Hoje, a economia está paralisada, e as famílias começam a sentir. Cristina viu aumentar sua popularidade por causa da ideia de que, durante o kirchnerismo, havia corrupção, mas os salários aumentavam. As pessoas pensam: "A coisa não estava mal" — avalia o sociólogo Carlos De Angelis, professor de Sociologia da Opinião Pública da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA).
A jogada de mestre de Cristina, reconhecida até por adversários, veio em maio. A Argentina discutia se a senadora se candidataria ou não à presidência. Afinal, era popular, mas enfrentava forte rejeição de grupos dentro do peronismo. Ela poderia ir para o segundo turno, mas perderia o balotage em razão das suspeitas de corrupção. Surpreendendo rivais e com um pé no banco dos réus, ela anunciou que seu candidato era Alberto Fernández, ex-chefe de Gabinete de Néstor e conhecido pela moderação: circula com facilidade entre empresários, se dá bem com a imprensa — algo que Cristina não consegue — e está imunizado do desgaste do poder. Cristina concorreria como sua vice. Assim, ela conseguiu agregar a simpatia dos kirchneristas mais fiéis sem perder o voto dos peronistas que haviam se distanciado.
Enquanto os estrategistas de Macri tentavam entender a jogada, a pobreza argentina subia para 35,4% no primeiro semestre, o maior índice desde 2001, e o desemprego elevava-se a 10,6%, a mais alta em 13 anos. A terceira onda viria com as primárias (El Paso), em agosto. Pesquisas mostravam vantagem de cinco pontos para Fernández. Mas a chapa da oposição venceria com 15,6 pontos de diferença (47,6% contra 32%) de Macri.
O resultado acendeu o alerta vermelho no governo e fora da Argentina. Um dia depois, no Rio Grande do Sul para inaugurar trecho da duplicação da BR-116 Sul, Bolsonaro fez um alerta:
— Não esqueçam, mais ao Sul, na Argentina, o que aconteceu nas eleições de ontem. A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma de Dilma Rousseff, que é a mesma de Hugo Chávez, de Fidel Castro, deram sinal de vida. Povo gaúcho, se essa esquedalha voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter no Rio Grande do Sul um novo Estado de Roraima — disse, em referência à crise migratória na fronteira com a Venezuela.
O resultado das prévias deflagrou uma tempestade financeira, que agravou ainda mais a crise econômica e que prejudicou de vez as ambições de Macri. Os investidores bateram em retirada.
Chance de vitória em primeiro turno
Pesquisas de intenção de voto, como a da empresa Ricardo Rouvier & Associados, apontam Fernández com 51,5% contra 34,9% de Macri neste domingo. Para vencer no primeiro turno, um candidato tem que obter 45% dos votos válidos ou 40% mais 10 pontos de vantagem sobre o segundo. O desespero das últimas semanas levou a cenas contraditórias. Macri passou a adotar posições normalmente associadas ao populismo: correu o país em comícios, mobilizando simpatizantes. Aumentou o salário mínimo e reduziu impostos sobre alimentos. Cristina preferiu o silêncio. Fala apenas durante eventos de lançamento de seu livro de memórias, Sinceramente. Mesmo assim, mantém tom comedido, bem diferente da mulher que incendiava eleitores devotos em estádios de futebol. Raramente, aparece junto a Fernández, que, segundo analistas, já se comporta como chefe de Estado, preocupado com o plano de governo.
— Parece que o presidente é Alberto, preocupado em governar. Macri parece um candidato opositor, que faz promessas que não pode cumprir — pontua De Angelis.
Uma das tantas dúvidas sobre o futuro da Argentina é o que irá ocorrer a partir de segunda-feira (28), se Macri perder. Como irá conduzir o governo até 10 de dezembro, quando passará o poder? Adotará a tática de terra arrasada, agravando a crise para entregar, como vingança, ao sucessor um país falido? Ou aceitará o pacto social proposto por Fernández, um acordo que uniria sindicalistas e empresários para evitar aumento de preços e de salários para segurar a inflação? As respostas começaremos a saber a partir das 18h de domingo.
O peso de cinco questões econômicas nas eleições
1. Inflação
A Argentina é um dos poucos países emergentes e em desenvolvimento que não conseguiram domar a inflação. Enquanto para todo esse grupo o FMI projeta média de 4,7% no final de 2019, a previsão para a Argentina é de 57,3%, uma das mais altas do mundo. De janeiro a setembro, a inflação acumula 37,7%. Uma forte depreciação da moeda (34% de janeiro a setembro) e um comportamento de inércia influenciam o alto índice de preços.
2. Recessão
O país está em recessão desde o segundo trimestre de 2018, com queda de 2,5% no PIB em 2018. O FMI estima que o declínio em 2019 será de 3,1% e em 2020 de 1,3%. Até agora, acumula 16 meses consecutivos de recessão. A queda no consumo e as taxas de juros de até 80% ao ano, com as quais tenta-se conter a fuga de divisas, sufoca as possibilidades de crescimento.
3. Pobreza
O aumento da pobreza é uma das questões que mais preocupam os argentinos. Algumas semanas atrás, o Congresso aprovou uma lei de emergência alimentar para alocar recursos aos planos sociais. Inflação e recessão resultaram em aumento acentuado dos níveis de pobreza, que passou de 29% estimados em 2015 para 35,4% no primeiro semestre de 2019.
4. Déficit
Com um plano de austeridade severo, a Argentina conseguiu reduzir o déficit fiscal primário de quase 7% do PIB em 2015 para cerca de 0,5% este ano. Em troca, o FMI concedeu ao país um empréstimo de 57 bilhões de dólares em três anos, dos quais desembolsou 44 bilhões desde maio de 2018, quando os mercados internacionais fecharam a porta.
5. Dívida
A dívida chega a US$ 315 bilhões, e o governo estima que em junho equivalia a 68% do PIB. Atualmente, as agências de classificação de risco calculam esse índice em quase 100% do PIB.