A organização criminosa investigada pela Polícia Federal (PF) por movimentar bilhões com o contrabando de grãos e agrotóxico vindos da Argentina usava documentos de produtores rurais para transportar as mercadorias. Conforme a apuração, os chamados "blocos de produtor rural" eram comprados pelos líderes do esquema, que chegavam a prometer arcar com o Imposto de Renda que o uso das notas acarretaria aos verdadeiros donos. Cerca de 60 pessoas são investigadas nas Operações Dangerous e Paschoal.
O trabalho que embasou a ação da PF nesta terça-feira (5) em 15 cidades do RS, Santa Catarina, São Paulo, Tocantins e Maranhão exigiu, desde 2022, esforços na rua para obtenção de flagrantes e imagens. Conforme o delegado Igor Bagatin Alexandre, depois que o grão é despejado nos caminhões de modo a granel, se ele tiver comprovação de origem — o que era feito com as notas compradas pelo grupo — é muito difícil apontar que se trata de mercadoria contrabandeada.
— Por isso, a importância dos flagrantes do barco na beira do rio descarregando, quando a mercadoria entra no Brasil, ou da mercadoria sendo transportada com documento irregular. Importante destacar o trabalho integrado com o 7º Batalhão de Polícia Militar e a Polícia Rodoviária de Ijuí, além da cooperação da Receita Estadual e Receita Federal — disse o delegado Farnei Franco Siqueira, chefe da Delegacia da PF em Santo Ângelo.
Conforme a PF, cada caminhão com mercadoria ilegal levava uma folha do bloco de produtor indicando o tipo de mercadoria, a quantidade e a placa do veículo. Caso fosse parado pela fiscalização, o motorista apenas complementava o documento com a data. Com isso, a carga estava legalizada. Houve casos de flagrantes em que os motoristas não conseguiram fazer o preenchimento a tempo. Numa das situações, ao tentar escrever dirigindo, o caminhoneiro quase causou um acidente.
Os produtores que fazem a venda destes documentos (como uma forma de renda extra) podem ter complicação com a Receita Federal, em função do Imposto de Renda devido a partir do uso das notas. E isso chegou a ocorrer, em um caso em que a promessa de um dos líderes de pagar estes valores não foi cumprida. Além disso, se ficar comprovado que sabiam para que os bloco seria usado, podem responder por outros crimes.
O esquema investigado, de contrabando de grãos, especialmente soja e milho, e agrotóxicos, usava portos clandestinos localizados à margem do Rio Uruguai. Segundo a PF, o volume de mercadorias internalizadas, aliada aos valores empregados para evasão de divisas e lavagem de capitais, fizeram com que a organização criminosa movimentasse valor superior a R$ 3,5 bilhões nos últimos cinco anos.
A investigação apontou que os líderes do esquema estão sediados em Palmeira das Missões. Dos 60 investigados, em torno de 20 integram a liderança do negócio criminoso, sendo, principalmente, empresários ligados ao ramo agropecuário. Os nomes dos investigados não foram revelados pela PF.
Até o começo da tarde desta terça-feira, as quatro prisões preventivas haviam sido cumpridas, sendo que dois alvos tiveram as ordens substituídas por medidas cautelares em função de questões de saúde. E das 12 prisões temporárias, oito foram cumpridas.
GDI flagrou contrabando
Em setembro deste ano, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) documentou a prática ilegal. A cena dos estivadores descalços descendo barrancas e descarregando os grãos nas balsas permite que os responsáveis pela mercadoria consigam vendê-la, no Rio Grande do Sul, por um preço de duas a três vezes maior. O dinheiro obtido varia conforme a conjuntura, mas sempre é muito mais lucrativo do que comercializar o grão na própria Argentina.
Ao introduzir de forma ilegal o produto pela fronteira brasileira, o produtor escapa do pagamento de impostos de exportação que são cobrados na Argentina.
Atracadouros na lama, escorregadores para o grão
O contrabando de soja fez proliferar a montagem de rotas clandestinas de escoamento de grãos. Toda uma infraestrutura foi montada dos dois lados do Rio Uruguai para garantir a empreitada. Começa na pavimentação de estradas municipais (com substituição de atoleiros por brita), na construção de galpões para armazenamento provisório de sacas de soja e de equipamentos (moegas ou tulhas), e em espécie de depósito provisório de metal com escorregador em forma de funil, para facilitar a colocação dos grãos nos caminhões e balsas.
A Brigada Militar e as polícias Civil e Federal mapearam mais de 50 portos clandestinos improvisados pelos contrabandistas ao longo de três municípios gaúchos: Tiradentes do Sul, Esperança do Sul e Crissiumal, todos na fronteira noroeste. Mas esses atracadouros improvisados na lama podem ser muito mais que 50. O GDI esteve em 10 portos concentrados num pequeno trecho de dois quilômetros nas proximidades de Porto Soberbo, distrito de Tiradentes do Sul.