Quinze meses depois de 21 pessoas morrerem por falta de oxigênio no Hospital Lauro Reus, de Campo Bom, no Vale do Sinos, a prefeitura estuda romper o contrato com a gestora da casa de saúde: a Associação Beneficente São Miguel (ABSM). O Executivo municipal não detalha o que motivou a decisão, dizendo apenas que "expectativas não foram atendidas". O Grupo de Investigação da RBS (GDI) apurou que ABSM tem, atualmente, 628 títulos protestados em Campo Bom, ou seja, não pagos.
A prefeitura confirma que há problemas de demora em atendimentos e de falta de insumos, mas destaca que essas são situações comuns a quase todos os hospitais do país e que não foram definitivas para a decisão.
Além disso, a entidade gestora do hospital Lauro Reus ainda tenta se desembaraçar de uma lista de 112 apontamentos de irregularidades feita pelo Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers) com base em uma vistoria iniciada em de 23 de março de 2021, quatro dias depois do incidente que causou as mortes. A ABSM respondeu questionamentos, mas o Cremers não concordou com as explicações. Um novo relatório de agosto ainda listava dezenas de irregularidades.
A prefeitura disse ter comunicado a ABSM sobre o estudo para possível mudança na gestão do hospital. Depois disso, passou a consultar empresas com interesse em assumir o Lauro Reus. Mas ainda não haveria nada de concreto. Pode, até mesmo, ocorrer definição para que a ABSM permaneça na gestão.
O GDI teve acesso à análise que o Cremers fez das respostas que a ABSM deu sobre os apontamentos da vistoria. As irregularidades apontadas pelo conselho dizem respeito apenas a questões técnicas e administrativas do setor médico. Conforme os fiscais, a ABSM não comprova que existe disponibilidade de especialistas, diuturnamente, nos serviços especializados que oferecem.
Alguns casos apontados são UTI, UTI covid, oftalmologia e nefrologia. Muitos médicos clínicos gerais estariam atuando nesses setores, que necessitam de especialistas. A sobrecarga de trabalho dos profissionais foi destacada no levantamento.
É também confusa, segundo o relatório, a relação trabalhista dos médicos (maioria tem Pessoa Jurídica). Faltam documentos que demonstrem o tipo de prestação de serviço ou vínculo empregatício com o Lauro Reus. Em várias especialidades há promessa de que o serviço será prestado por médicos de outros hospitais e clínicas, mas sem a devida comprovação de como isso ocorre. Alguns estariam vinculados a outros hospitais ligados à ABSM e foram listados como atuantes no estabelecimento de Campo Bom.
Questionado sobre se o hospital já corrigiu as irregularidades, o Cremers informou que o Lauro Reus "ainda tem 20 dias para regularizar os problemas apontados pelo Departamento de Fiscalização". Os apontamentos foram feitos em agosto do ano passado.
Conforme o Cremers, assim que o hospital fiscalizado for respondendo e apresentando soluções, novos prazos serão concedidos. O GDI quis saber quantas das irregularidades já foram corrigidas desde agosto, mas o conselho se limitou a dizer que "essas informações são reservadas às partes envolvidas".
O relatório com os apontamentos do Cremers também foi enviado ao Ministério Público (MP) de Campo Bom e faz parte do expediente que tramita no MP para acompanhar a situação do hospital. Conforme a promotora Letícia Elsner Pacheco de Sá, no entanto, nem todas as situações são de atribuição do MP e devem ser solucionadas pelo conselho ou ainda pela Secretaria de Saúde.
Segundo a promotora, diversas questões que são enviadas ao MP desde o incidente são de responsabilidade de órgãos administrativos. Nestes casos, o MP encaminha e acompanha as soluções.
Em junho do ano passado, a Polícia Civil indiciou oito pessoas por homicídio culposo e duas por falso testemunho na investigação das primeiras seis mortes ocorridas no Hospital Lauro Reus depois de haver interrupção de fornecimento de oxigênio, em 19 de março.
A investigação apurou que o nexo causal entre a falha no fornecimento de oxigênio e a morte dos pacientes foi suficientemente documentada por informações constantes nos prontuários médicos dos pacientes, além de depoimentos de familiares, médicos e enfermeiras.
Em uma segunda investigação, a polícia de Campo Bom constatou que outros 15 pacientes que estavam entubados faleceram dias depois do incidente também em decorrência da mesma causa.
O que diz Rafael França, presidente da ABSM:
"Participamos de um processo de licitação e vencemos, tudo dentro da lei, para um período de cinco anos de contrato. Temos o interesse de continuar a prestação de serviços até o final do mesmo. Ainda restam cerca de 3 anos de contrato. O início do mesmo se deu bem no início da pandemia, prevendo 70% SUS e 30% saúde suplementar. Um mês depois de assinado o contrato de início, começou a pandemia, com elevação de custos sem precedentes, e necessidade de investimentos em pessoal, equipamentos, etc. , e com a requisição do hospital 100% SUS. A São Miguel operando 100% SUS e sem receber do município o que efetivamente gastou, gerou um desequilíbrio econômico do contrato. E por isso teve que priorizar folha de pagamento de funcionários e dos médicos, sempre pagos rigorosamente em dia. Hoje, a ABSM está com a situação fiscal regular perante os órgãos arrecadatórios de impostos, tributos e taxas, e vem buscando negociar e regularizar eventuais débitos com fornecedores, que geraram títulos protestados. A maioria das casas de saúde passaram por infortúnios durante a pandemia, por conta deste aumento significativo do custo.
Sobre o relatório do Cremers, feito 15 meses atrás, no auge da pandemia, todos os questionamentos foram respondidos, e foi esclarecido que a maioria dos apontamentos não conformes o foram feitos porque não foram enviadas as respostas solicitadas (no questionamento) na época (auge da pandemia), o que não significa que estava desconforme. Hoje, o hospital está dentro do que preconiza a legislação sanitária, e muitas das melhorias de infraestrutura que são necessárias vão ser realizadas pela administração municipal, já que o prédio é público e esta previsão está no contrato. Está sendo feito um projeto de reforma, pelo município, com previsão de investimento de cerca de R$ 5 milhões, que vai mudar para melhor o nosocômio. Ontem, dia 29/06, a Vigilância Sanitária do Município de Campo Bom, esteve fazendo auditoria na nossa UTI, tendo recebido já informalmente uma avaliação positiva da mesma. Prestamos contas sobre o contrato mensalmente para a prefeitura e recebemos sempre uma avaliação positiva do município sobre a execução do contrato.
Nota oficial da Prefeitura de Campo Bom:
A Prefeitura de Campo Bom informa que trabalha com a possibilidade de mudanças na empresa gestora do Hospital Lauro Reus. Fato já informado à Associação Beneficente São Miguel. No entanto, como se trata de um processo que envolve diversas etapas, não temos como passar mais informações no momento. Assim que tivermos uma resolução, tudo será informado com a maior transparência possível, como sempre foi a gestão dessa administração.