O senador gaúcho Luis Carlos Heinze (PP) foi um dos principais parlamentares que questionaram os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich e o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga, na CPI da Covid no Senado. GZH checou as suas declarações na sessão de terça-feira (4) da comissão.
Ivermectina, outro medicamento sem patente que tem demonstrado constante eficácia no tratamento da covid-19.
Não procede
A farmacêutica norte-americana Merck, que produz a ivermectina, publicou comunicado em fevereiro de 2021 informando não existir evidência de eficácia do fármaco contra a covid-19.
— Os principais estudos mundiais, infelizmente, falham ao tentar demonstrar qualquer benefício da ivermectina contra a covid-19. Isso ainda é raro, mas já temos pacientes demonstrando efeitos adversos graves no sistema nervoso e no fígado por conta da toxicidade da ivermectina — comenta Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), referência no tratamento da covid-19 no Rio Grande do Sul.
O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), destaca o estudo “Por que você não deve usar ivermectina para tratar ou prevenir covid-19”, publicado pela FDA U.S. Food & Drug, a agência reguladora das indústrias alimentícia e farmacêutica do governo dos Estados Unidos.
“O FDA não aprovou a ivermectina para uso no tratamento ou prevenção de covid-19 em humanos. Os comprimidos de ivermectina são aprovados em doses muito específicas para alguns vermes parasitas (...). Tomar grandes doses deste medicamento é perigoso e pode causar danos sérios”, diz comunicado da agência norte-americana FDA.
— A declaração (do senador) é ciência de WhatsApp. A ciência mundial não recomenda a ivermectina para o tratamento da covid-19, todas as evidências são de que não funciona —destaca Hallal.
A crítica, aqui, é em cima do governo brasileiro. A União Europeia, eu ouvi crítica no dia 1º de abril, da Organização Mundial da Saúde, contra a Europa, que estava muito aquém da vacinação.
É verdade
A Organização Mundial da Saúde (OMS), no primeiro dia de abril, classificou como “inaceitável” a lentidão da vacinação na Europa.
“A lentidão da vacinação prolonga a pandemia”, disse, em comunicado, a divisão europeia da OMS.
No início de abril, havia preocupação com o avanço do coronavírus no Velho Continente. “As vacinas são a melhor maneira de superar a pandemia. Não apenas funcionam, como também são muito eficazes para que as infecções sejam limitadas”, atestou a OMS.
Diretor da OMS na Europa, Hans Kluge disse que “a aplicação dessas vacinas é inaceitavelmente lenta”.
À época da crítica da OMS, a Europa tinha imunizado 12,44% da população com a primeira dose, conforme dados do “Our World in Data”, plataforma ligada à Universidade de Oxford. A taxa era inferior a de países como Israel (60,59%), Chile (35,55%) e Estados Unidos (29,18%). Por outro lado, a taxa europeia era maior do que a do Brasil (7,02%) à época.
Aqui eu tenho o Didier Raoult, outro renomado cientista, que foi execrado. E aqui, senador Renan, senador Randolfe, começa a história. Esse Didier Raoult, cientista francês, falou isso. (contexto elogioso para a suposta eficácia do tratamento precoce e politização do tema)
Não é bem assim
O médico infectologista francês foi considerado o maior defensor da cloroquina e da hidroxicloroquina no início da pandemia, em março de 2020. Ele conduziu um estudo com poucas dezenas de pacientes, os quais teriam sido curados com o uso da hidroxicloroquina. Análises posteriores mostraram falhas na pesquisa. Em 4 janeiro de 2021, Raoult publicou novo artigo reconhecendo que a medicação não reduz as mortes por covid-19.
“As necessidades de oxigenoterapia, a transferência para a UTI e o óbito não diferiram significativamente entre os pacientes que receberam hidroxicloroquina com ou sem azitromicina e os controles feitos apenas com tratamento padrão”, escreveu Raoult na revisão, publicada no site do Centro Nacional de Informações sobre Biotecnologia, da França.
Após a repercussão midiática do reposicionamento, ainda em janeiro de 2021, ele foi ao Twitter para afirmar que “nunca mudou de ideia”.
Nesta nova posição, ele disse que o tempo de internação de pacientes tratados com hidroxicloroquina e azitromicina foi menor. Também afirmou que foi observada redução do tempo de permanência do vírus no organismo, com subsequente demonstração de eficácia na mortalidade, ao contrário do que havia dito no artigo anterior.
Desde 2020, cientistas e a Organização Mundial da Saúde (OMS) criticam Raoult por ele não ter seguido protocolos científicos padrão. O médico, que desfrutava de prestígio internacional, passou a ser investigado por um Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, na França.
Pesquisa realizada pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, concluiu que a hidroxicloroquina não tem nenhum efeito benéfico quando trata-se de covid-19. A Nature, uma das revistas científicas mais respeitadas do mundo, publicou recentemente um artigo em que os pesquisadores concluíram que “o tratamento com hidroxicloroquina está associado com maior risco de mortalidade para pacientes com covid-19”. O indicativo é de que, em vez de ajudar, o fármaco pode tornar ainda mais delicada a situação do paciente.
Eu tive covid, a minha esposa teve covid, e nos salvamos. A minha filha, a minha neta, o meu neto, covid, tudo com esse tratamento.
Não procede
A avaliação de especialistas no tema é de que a conexão entre a recuperação e o uso de medicamentos do chamado tratamento precoce não pode ser feita por dois motivos, principalmente.
— A presunção de que um tratamento precoce controlou a doença é improcedente. A razão maior disso é que, para cada 10 casos de covid-19, de oito a nove pessoas têm evolução satisfatória sem nenhum tratamento específico. A evolução é favorável para 90% dos casos sem tratamento algum. Poderia citar inúmeros casos de outras famílias que tiveram covid, não usaram nada do kit e evoluíram bem — diz Alexandre Vargas Schwarzbold, médico, professor do curso de Medicina da UFSM e presidente da Sociedade Riograndense de Infectologia.
Schwarzbold salienta que, antes de qualquer conexão farmacológica, seria necessária a análise individualizada dos remédios que o senador afirma ter tomado. Também seria desejável, para sustentar tal afirmação, uma análise científica sobre os resultados combinados dos fármacos ingeridos pelo parlamentar.
— Não tem nenhum estudo indicando a eficácia de todos esses medicamentos do kit. A percepção pessoal de que foi o kit que curou está muito mais associada a uma campanha que existe em rede social do que à informação científica — destaca o especialista.
Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), tem avaliação semelhante.
— Para cada cem pessoas (contaminadas), se dermos água benta, 85 delas vão evoluir de forma muito satisfatória. Outras 10 vão evoluir com alguma complicação, tendo sintomas como tosse e um pouco de falta de ar. E cinco vão precisar de atendimento hospitalar. A imensa maioria melhora sem intervenção alguma. Obviamente, não tem como estabelecer que a recuperação veio por determinado remédio — diz Sprinz.
Apesar de alegar sucesso com a ingestão de medicamentos precocemente, o senador Heinze sofreu agravamento do quadro de saúde em novembro de 2020, quando foi diagnosticado com covid-19, e precisou ser internado no Hospital Vila Nova Star, em São Paulo.
Rancho Queimado, 419 casos, duas mortes. Doutor Armando Taranto aplicou esse tratamento na comunidade de Rancho Queimado. (...) Duas mortes, dois óbitos. (contexto de elogio para a suposta eficácia de medicamentos do kit covid)
Não é bem assim
As duas mortes citadas pelo senador estão corretas e o número de casos de coronavírus, de 419, é impreciso. O Ministério da Saúde apontava nesta quinta-feira (6), dois dias após a manifestação na CPI, que o município somava 392 casos acumulados de covid-19, 27 a menos do que o citado pelo parlamentar.
Para epidemiologistas, o principal ponto de questionamento na manifestação do senador reside na utilização do caso de Rancho Queimado para ilustrar um possível sucesso do tratamento precoce. Um dos motivos para isso é o fato de terem ocorrido duas mortes dentre 392 casos confirmados de covid na cidade catarinense de 2,8 mil habitantes, o que deixa a taxa de letalidade dentro de padrões corriqueiros na pandemia.
— Com esse quantitativo de casos, é esperado que morram justamente de duas a três pessoas, de acordo com as estatísticas que temos. A letalidade estimada da covid, considerando o número de pessoas que pegam o vírus e quantas morrem, é abaixo de 1%. Não tem nada de pior ou de melhor em Rancho Queimado do que no resto do mundo. É uma letalidade esperada — diz o epidemiologista Pedro Hallal, da UFPel.
Outro apontamento é que municípios pequenos, de tamanho assemelhado a Rancho Queimado, podem ter quantidade de óbitos menor, independente de uso de kit covid.
Segundo o painel da Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul, até a tarde desta quinta-feira (6), a cidade de Pedras Altas, de 1,9 mil habitantes, não teve nenhum óbito. Já Monte Alegre dos Campos (RS), de 3,2 mil moradores, registrou duas mortes, conforme dados das 15h36min desta quinta-feira (6).
— Você vai encontrar muitas cidades do Rio Grande do Sul com populações maiores do que essa (de Rancho Queimado) sem mortes ou com poucas mortes, e onde não se preconiza esses tratamentos. Também não dá para utilizar uma cidade desse porte como referência de impacto de tratamento. É uma estatística enviesada — diz Alexandre Vargas Schwarzbold, presidente da Sociedade Riograndense de Infectologia.
— Usar uma cidade pequena como exemplo do todo é desconhecer estatística — avalia Hallal.
Na contramão do que diz o senador, há casos de cidades que fizeram ampla distribuição de medicamentos do chamado kit covid e, hoje, ostentam altos índices de letalidade. É o caso de Itajaí, em Santa Catarina, que providenciou a distribuição à população de milhares de comprimidos de ivermectina. Itajaí fechou o ano de 2020 com a maior taxa de letalidade (1,76%) por covid-19 entre as grandes cidades catarinenses, aquelas com mais de 100 mil habitantes.
Falaram que não tem recomendação. Como é que vai ter recomendação, doutor Mandetta? A pandemia começou em janeiro, fevereiro do ano passado, que recomendação vai ter?
Não procede
Os epidemiologistas consultados asseguram que já há, sim, recomendações a respeito de medicamentos do chamado tratamento precoce. E as recomendações são para que os fármacos não sejam usados no tratamento da covid-19.
— São extremamente robustas, no mundo inteiro, as recomendações. O que existe é a recomendação de não uso pela sua falta de utilidade. Isso já veio da OMS, da Sociedade Brasileira de Infectologia, da Sociedade Brasileira de Terapia Intensiva e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC - Centers for Disease Control and Prevention) — afirma Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
O senador, na sua afirmação, indica que houve pouco tempo desde o início da pandemia para eventual “recomendação” dos fármacos. Desde a chegada da covid-19, outras soluções já foram desenvolvidas, testadas cientificamente, aprovadas e, atualmente, encontram-se em uso, com resultados já perceptíveis e positivos. É o caso das vacinas produzidas por diferentes laboratórios no mundo. No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso emergencial do Regn-CoV2, coquetel composto por dois anticorpos monoclonais desenvolvido pela farmacêutica Roche. É um medicamento indicado para o uso no início da doença, para evitar o agravamento, e sua aplicação é exclusiva nos hospitais.
Para especialistas, o determinante para a falta de recomendação de uso de medicamentos do chamado kit covid não tem relação com espaço de tempo de surgimento da pandemia, mas com a ausência de comprovação de qualquer benefício.