Entenda a reportagem em quatro pontos
- O volante do Palmeiras Felipe Melo se associou a um empreendimento de clínicas populares em Porto Alegre em 2018.
- A clínica fechou um mês depois da inauguração, sem mais explicações. O Grupo de Investigação da RBS descobriu que divergências entre Melo e Marcelo Castro, um dos sócios da empresa, levaram ao fim do empreendimento.
- O empreendimento acabou sendo criado pela transformação do CNPJ de um restaurante do Campo da Tuca na clínica.
- A clínica foi registrada em nome de terceiros na Junta Comercial. Os quatro verdadeiros sócios assinaram um contrato de gaveta, revelado nesta reportagem.
Com dois sócios de fachada na documentação oficial registrada na Junta Comercial, Industrial e Serviços do Rio Grande do Sul (Jucis-RS), a clínica de saúde popular Doutor Melo tinha quatro proprietários "quentes", todos signatários de um contrato de cinco páginas que foi deixado na gaveta.
Os donos do negócio fecharam acordo em 10 de dezembro de 2018, quase um ano antes da abertura do empreendimento, no centro de Porto Alegre. São acionistas o jogador do Palmeiras Felipe Melo — que emprestou seu nome ao negócio — e a sua esposa, Roberta Nagel, além do advogado, empresário e ex-dirigente do Inter Marcelo Domingues Freitas e Castro. Também aparece como sócio o economista Kleber Shimomukay, diretor do plano de saúde Porto Alegre Clínicas. Shimomukay afirma que perdeu o interesse no empreendimento com a demora para concretizar a operação e diz que jamais participou do negócio, tendo acreditado estar descompromissado com os demais investidores pelo fato de o contrato assinado por ele não ter sido registrado nos órgãos oficiais.
O documento foi entregue pelo próprio Castro à reportagem. Ao fazer isso, ele pretendia indicar que Felipe Melo supostamente sabia desde o início que seria sócio oculto da clínica. Na primeira manifestação após o fechamento, o jogador e sua esposa se declararam "surpresos" ao tomar ciência de que eles não constavam na documentação registrada na Jucis-RS.
O "contrato social" oculto reproduz as características dos papéis de uma empresa nova que está por ser criada na Jucis-RS e em demais órgãos de controle, como a Receita Federal. No entanto, a opção foi por deixar esse documento guardado, de conhecimento exclusivo dos sócios. A clínica acabou surgindo a partir da transformação de uma empresa já existente, um restaurante no Campo da Tuca, com o uso de nomes de terceiros como proprietários.
No contrato engavetado, o capital da Doutor Melo era dividido em três partes iguais: uma de Felipe e sua esposa, outra de Castro e uma terceira de Shimomukay. O ex-dirigente do Inter era o administrador responsável pelo empreendimento, diz o documento.
Neste acordo, a razão social da empresa é diferente: em vez de Doutor Melo Clínica de Atividade Médica Ambulatorial, consta a denominação KMRF Clínica, em referência às iniciais dos sócios Kleber, Marcelo, Roberta e Felipe.
Dentre os pontos iguais entre os contratos de gaveta e o oficial registrado na Jucis-RS, destacam-se o mesmo endereço, na Rua da Conceição, número 195, e o objeto social de prestar atendimento de saúde e especialidades médicas.
Todas as páginas estão rubricadas pelas partes envolvidas e, no final, os quatro sócios registraram assinatura, mas não houve reconhecimento de firma em cartório. Uma advogada e duas testemunhas também deram os seus vistos.
Na Jucis-RS, o contrato da Doutor Melo registrado perante as autoridades somente foi homologado em 11 de junho de 2019. Um dos terceiros que teve o nome usado foi Alfredo Woycicki Neto, um sorveteiro do Campo da Tuca que havia criado o CNPJ em 2012, tendo como atividade o ramo alimentício. O outro é João Aldomiro do Nascimento, contador da confiança de Castro.
Quando Aldomiro entrou na sociedade com Woycicki, o objeto social foi alterado, deixando de atuar no ramo alimentício no Campo da Tuca, mudando sua atividade para uma clínica médica no centro de Porto Alegre. Woycicki tem rotina de sorveteiro e Aldomiro atua na consultoria empresarial Argos, outra propriedade de Castro registrada em nome de terceiros. Tanto Woycicki quanto Aldomiro não compareciam à clínica e os empregados não os conheciam. Castro era a referência no dia-a-dia do empreendimento.
A Doutor Melo fechou em novembro, menos de um mês após a inauguração, com a dispensa das seis trabalhadoras contratadas. O motivo para o encerramento abrupto foi o rompimento entre Felipe Melo e Castro. Suas esposas são primas e eles tinham negócios anteriores. O jogador passou a se declarar enganado pelo sócio em outras parcerias, como a gestão da Next Academy e um investimento de quase R$ 5 milhões na empresa Montenegro Participações e Investimentos. O atleta declara desconhecer o paradeiro do dinheiro aplicado. Também registrada oficialmente em nome de terceiros, a Montenegro é apontada na Justiça, em processos de execução fiscal, como uma dentre outras empresas do suposto "grupo de blindagem" do patrimônio de Castro.
O que dizem especialistas sobre esse tipo de contrato
Especialistas consultados pela reportagem elencam uma série de fatores que podem levar, hipoteticamente, investidores a optarem por registrar oficialmente suas empresas em nomes de terceiros. Quando se trata de um negócio lícito, como uma clínica médica popular, uma das motivações suscitadas é a intenção de se eximir de eventuais consequências negativas futuras.
— Aqueles que ficam submersos não querem expor seus CPFs. E, para isso, criam uma situação fictícia, que não deixa de ser ilegal. Nesta simulação, os riscos do empreendimento aparentemente recaem sobre os CPFs e o CNPJ dos laranjas. Se algo der errado, possíveis cobradores vão bater em portas em que não encontrarão ninguém — explica o advogado Aloísio Zimmer, especialista em Direito Administrativo.
Ele salienta a possível irregularidade da situação:
— Tem uma fraude que fica evidente, já que o gestor da empresa, aquele que pratica os atos de gestão e age como dono, não está assim formalmente designado.
Zimmer exemplifica que, a partir do ato fraudulento, podem ser tipificados delitos como estelionato e falsidade ideológica, dependendo do exame detalhado de cada caso.
Eventuais conflitos de interesses também podem levar investidores a ocultarem seus CPFs de contratos sociais de empresas. Burocracias e não cumprimento de requisitos formais em órgãos públicos podem ser outras motivações.
— Todo o tema das contratações tem um regime de publicidade na legislação. As pessoas preparam as suas contratações e levam ao conhecimento público através da Junta Comercial. O problema começa quando se esbarra em dificuldades burocráticas para determinados registros. Se uma pessoa está impossibilitada de fazer um registro, ainda que temporariamente, se criam os famosos contratos de gaveta, que possuem validade jurídica em determinadas situações — detalha o doutor em Direito e criminalista Lúcio De Constantino.
A busca por vantagens tributárias e eventuais práticas de lavagem de dinheiro também pode levar ao uso de contratos de gaveta e registros empresariais em nomes de terceiros, destacam os especialistas.
CONTRAPONTOS
O que diz Marcelo Freitas Domingues e Castro
Sobre a opção de fazer um contrato de gaveta
"A opção naquele momento não foi de constituir a nova empresa, por solicitação do sr. Felipe Melo, até porque havia a possibilidade de novos sócios".
Sobre a abertura da clínica quase um ano após a assinatura do contrato da KMRF
"Foi por estruturação do local - obra civil , elétrica , pluvial - e projetos, licenças, contratação de funcionários, etc".
Sobre a eventualidade de sociedades ocultas serem usadas para redução de tributos ou lavagem de dinheiro
"Não há ocultação, apenas uma situação momentânea, por solicitação do sócio Felipe Melo, em virtude da possibilidade de novos sócios."
Sobre o uso frequente de empresas em nomes de terceiros por parte de Castro
"Conforme decisão judicial existente, não há ocultação de patrimônio."
O que dizem Felipe Melo e Roberta Nagel - A resposta foi enviada por Roberta Nagel
Sobre o contrato social da KMRF
"Sim, assinamos, acreditando que este era o contrato social da clínica que previa o nosso investimento, mas, para nossa surpresa, ele nunca foi levado a registro."
Sobre a opção de deixar o contrato da KMRF engavetado
"Até agora estamos buscando respostas para esta e mais dezenas de outras manobras do senhor Marcelo Castro. Soubemos, pelo Zero Hora, que não éramos os verdadeiros sócios e que o contrato social que assinamos nunca foi registrado."
Sobre eventual pedido do casal em não aparecer na documentação da sociedade
"Nunca solicitamos. Pelo contrário, assinamos o contrato social justamente acreditando que seria registrado, para ingressarmos na clínica na qualidade de sócios investidores, tendo inclusive aportado elevada quantia de recursos para tanto. Ele (Marcelo Castro) seria o sócio administrador e, nós, os sócios investidores. Inclusive, não faria sentido o Felipe ser sócio oculto em uma clínica que leva o sobrenome dele. O fato é que somos mais uma vítima do Marcelo."
Sobre a sociedade oculta e a eventual relação disso com redução de carga tributária e assemelhados
"Nada disso. Nós nunca tivemos a intenção de ser sócios ocultos. Pelo contrário, assinamos o contrato social da sociedade acreditando que seria registrado. Nesta altura do campeonato, já estamos sabendo que ilegalidade é prática rotineira na vida dele (Marcelo Castro)."
Sobre Kleber Shimomukay, que também assina o contrato da KMRF
"Não o conhecemos. Mais uma vez, como confiávamos plenamente no Marcelo, que era nosso advogado e assessor para assuntos de natureza financeira, tributária e questões de confiança, ele nos apresentou este nome, alegando experiência deste sócio na área médica e administrativa (experiência esta que nós não temos, atuaríamos apenas como investidores). E, como ele tinha carta branca, acatamos a ideia".
O que diz Kleber Shimomukay
"Existiu o interesse e o contrato foi firmado. Pelo que sei, o contrato não foi registrado por solicitação de uma das partes. Nunca houve vontade de formar sociedade oculta. Nunca pedi para não aparecer no contrato social. Havia informado, posteriormente, que eu não continuaria na sociedade por uma questão estratégica minha. Sou da área de planos de saúde, operação totalmente distinta de clínicas médicas. Sobre a operação da clínica, pouco posso falar, pois não participei em nenhuma etapa do processo e não era responsável."