Documentos dotados de fé pública da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e da Justiça Federal indicam que a empresa Montenegro Participações e Investimentos S/A é um dos principais pilares do suposto "grupo de blindagem" que existiria em torno dos bens do advogado, empresário e ex-dirigente do Inter Marcelo Domingues Freitas e Castro.
O objetivo de manter uma complexa estrutura empresarial, com uso de nomes de terceiros como proprietários, seria evitar o confisco das suas propriedades e valores pela União, que move ações de execução fiscal para cobrar de Castro e do seu núcleo econômico dívidas tributárias que, em um dos processos, alcança a cifra de R$ 40 milhões.
Castro é investigado pelo Ministério Público Estadual por supostos desvios de recursos do caixa do Inter em 2015, período em que ele foi vice-presidente jurídico, na gestão de Vitorio Piffero. Mais recentemente, estourou publicamente o caso da clínica de saúde popular Doutor Melo. Castro e o jogador do Palmeiras Felipe Melo eram sócios ocultos do negócio e, devido a desacertos, fecharam o empreendimento menos de um mês depois da abertura, no centro de Porto Alegre.
O atleta e o ex-dirigente colorado têm relação de longa data: suas esposas são primas, houve convivência familiar até o recente rompimento em 2019 e eles detinham negócios juntos.
Esposa do jogador, Roberta Melo comentou o encerramento repentino das atividades da Doutor Melo, cuja abertura ensejou investimento de R$ 3 milhões, e acusou Castro de ter prejudicado sua família em outros negócios. Um deles seria o investimento de "milhões de Reais" do jogador na empresa Montenegro, a qual Felipe e Roberta dizem não mais conseguir contatar, dando o dinheiro como perdido.
A Montenegro é, na prática, mais uma empresa controlada por Castro, definida pela Procuradoria da Fazenda como parte do "grupo de blindagem" do ex-dirigente colorado. Apesar das supostas tentativas de ocultação, a Montenegro teve os bens bloqueados pela Justiça em ação movida pela PGFN. Outras pessoas jurídicas sofreram indisponibilidade de bens no mesmo processo: Satnit do Brasil Consultoria Empresarial, Freitas e Castro Consultores Associados e Marpa e Castro Consultores Associados. Dentre pessoas físicas, além do próprio Castro, foi alvo do bloqueio a mãe dele, Zoe Domingues de Freitas e Castro, uma senhora de 83 anos que consta como acionista de uma das empresas implicadas. Todos foram considerados membros do "grupo de blindagem".
O bloqueio ocorreu em dezembro de 2012, em uma medida cautelar fiscal, expediente que permite a possibilidade de futura penhora para ressarcir a União, parte que alega ter sido lesada. Na Justiça Federal, houve sentença de primeira instância em 11 de abril de 2018, mas o conteúdo da decisão não foi disponibilizado pelas autoridades devido ao segredo de Justiça que envolve o caso. O processo segue tramitando, atualmente na segunda instância, depois que uma apelação foi apresentada ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) em agosto de 2018. Esse recurso aguarda julgamento, sob os cuidados do desembargador Roger Raupp Rios, relator do caso. O TRF4 informou que, até o momento, "não houve nenhuma decisão a favor dos réus" a respeito de desbloqueio de bens.
A reportagem localizou parte desta documentação na Junta Comercial, Industrial e Serviços do Rio Grande do Sul (Jucis-RS). Por ordem da Justiça, a decretação de bloqueio de bens foi juntada ao histórico empresarial da Montenegro arquivado na Junta.
"Encontramos que a executada formou um grupo econômico, com a constituição de diversas empresas e, também, pessoas físicas para as quais está desviando seus bens, atentando contra a dignidade da Justiça, com a conduta de confusão patrimonial. (...) A executada está blindando o seu patrimônio para não responder, perante a Justiça, por suas dívidas. Dou especial destaque, na estrutura societária criada para blindagem, à empresa Montenegro Participações e Investimentos S/A", diz a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em inicial recebida pela 1ª Vara Federal de Execuções Fiscais de Porto Alegre, responsável por emitir a medida cautelar com diversos bloqueios de bens atribuídos a Castro.
A relevância da Montenegro nas operações, conforme destacado pela União, encontra respaldo nos casos concretos da relação de Castro com o Inter e com a Doutor Melo. A União requereu o bloqueio de imóveis da Montenegro em Porto Alegre, Gramado, Atlântida, Capão da Canoa, Florianópolis e Itapema, as duas últimas em Santa Catarina. Um dos bens congelados fica no Edifício Chaves & Almeida, na Rua Conceição, número 195, no centro de Porto Alegre, defronte à rodoviária. Todo o primeiro andar deste prédio foi alugado para a Doutor Melo funcionar. Castro seria o beneficiário do aluguel.
No caso do Inter, a Montenegro foi a destinatária final de pelo menos um cheque emitido pelo clube para pagar a rescisão contratual acordada na Justiça do Trabalho com o zagueiro Danny Morais. Segundo investigações do MP, em troca de um acordo acima dos padrões e com deslinde rápido, o atleta devolveria uma parcela do dinheiro a Castro. Um cheque de R$ 34,6 mil saiu da conta do colorado em julho de 2015, passou por uma empresa intermediária de um associado de Castro, e teve como parada final os fundos da Montenegro. O MP também entende que a Montenegro é propriedade de Castro. Um imóvel registrado em nome desta empresa foi alugado ao ex-lateral Paulo Cezar Magalhães no período em que ele jogou em Porto Alegre. A contratação desse jogador, entre outros fatos, motivou o MP a denunciar o ex-vice-presidente de futebol Carlos Pellegrini pela prática de crimes devido ao suposto recebimento de propina na transação de atletas profissionais.
A Montenegro foi fundada em abril de 2007, inicialmente com endereço em Porto Alegre, e atualmente registrada em Novo Hamburgo. Desde o início, a sua principal acionista é Ana Paula de Oliveira Tochetto. Segundo apurações em andamento, Castro a teria usado apenas como preposta, repetindo a estratégia de outros negócios. Ana Paula é funcionária da Argos, empresa de consultoria de Castro, a qual também está registrada em nome de terceiros. Na quarta-feira, a reportagem ligou para a Argos duas vezes e a telefonista confirmou em ambas que Ana Paula atua no setor financeiro da empresa.
Junto à União, a Montenegro está cadastrada como devedora de R$ 53,5 milhões em tributos. Como pessoa física, Castro é listado como responsável pela pendência de R$ 70 milhões. Na Receita Federal, a situação cadastral da Montenegro consta como "inapta" em decorrência de "omissão de declarações".
Investigações em andamento no MP já apuraram, via quebra de sigilo bancário, que o ex-dirigente colorado movimenta grandes quantias de dinheiro em transações eletrônicas. O forte da sua renda não seriam apenas a advocacia e a consultoria empresarial, mas ele atuaria emprestando dinheiro a círculos da sociedade gaúcha, incluindo pequenos e médios empreendedores. Depois de ofertar o capital sem burocracia, ele partiria para cobranças rígidas e com juros altos.
CONTRAPONTO
O que diz Marcelo Freitas Domingues e Castro
Sobre Ana Paula de Oliveira Tochetto ser funcionária da Argos, mas proprietária da Montenegro na documentação, e a alegação da União de que a empresa é parte de um grupo de blindagem de bens.
"A senhora Ana Paula não é funcionária da Argos. Quanto à empresa Montenegro, seus atos constitutivos são públicos. A União Federal apenas alega"
Sobre o processo de execução fiscal em andamento no TRF4, com bloqueio de bens.
"Esta alegação de blindagem foi enfrentada judicialmente, com decisão contrária às alegações da PGFN, inclusive com arquivamento requerido pelo MPF. A decisão infra se trata de inquérito para apuração dos supostos crimes alegados na execução. Cada procedimento recebe numeração diferenciada, mas tramitam conjuntamente, tratando-se do mesmo caso." (A reportagem questionou Castro sobre a execução fiscal que segue em andamento no TRF4, com bloqueio de bens. Na resposta, ele se referiu a um processo distinto, que tramitou na esfera criminal e foi arquivado devido à prescrição. A reportagem retomou contato e explicou que o pedido de contraponto se referia à execução fiscal em andamento, e não ao processo criminal arquivado. Mesmo assim, Castro manteve a resposta de que houve arquivamento na investigação criminal, deixando de comentar o objeto da pergunta, que é a execução fiscal e o bloqueio de bens).
Sobre Felipe Melo e sua esposa terem acusado Castro de os orientar a fazer investimento milionário na Montenegro, valor que, segundo eles, estaria desaparecido.
"O senhor Felipe Melo e sua esposa sempre tiveram e têm assessoria financeira, que orienta quando e onde devem aplicar seus ativos."
Sobre a atividade empresarial da Montenegro e o fato de estar em nome dessa empresa o imóvel alugado à clínica Doutor Melo
"Em primeiro lugar, o referido imóvel não está e nunca esteve em meu nome. Com relação à propriedade, que não se trata de edifício, onde foi estabelecida a Clínica Melo, consta em matrícula."
Sobre o cheque com dinheiro do Inter para pagar a rescisão do zagueiro Danny Morais, cujo saldo foi parar na conta da Montenegro
"Desconheço esta operação."
Sobre fazer empréstimos informais de dinheiro, cobrando depois altos juros
"Não há qualquer inquérito contra minha pessoa, conforme folha corrida datada de 21/11/19." (Na verdade, o alvará de folha corrida apresentado por Castro diz que "não consta condenação criminal com trânsito em julgado ou pena ativa" contra ele. Ele é alvo de um Procedimento Investigatório Criminal (PIC) no Ministério Público Estadual pelos supostos desvios no Inter. E consta como executado na Justiça Federal em processos de cobrança de dívidas fiscais)
O que diz Ana Paula de Oliveira Tochetto
A advogada Geórgia Leão disse, via e-mail, que "não poderia contribuir" diante de questionamentos enviados pela reportagem. Por telefone, a defensora afirmou que a execução fiscal contra a Montenegro, entre outras empresas, corre em segredo de Justiça. Por isso, ela não teceria comentários até a sentença ser exarada.
Zoe Domingues de Freitas e Castro foi procurada pela reportagem, incluindo diversos pedidos de contato ao filho dela, Marcelo, mas não houve retorno.