Protegidas pela baixa capacidade de fiscalização do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), instituições financeiras fazem novas vítimas a cada dia. Aposentados estão sofrendo descontos mensais não autorizados que surgem nos seus contracheques a título de seguros que jamais contrataram.
Duas das principais beneficiárias dos abatimentos nos vencimentos são o Grupo Sabemi, banco com sede em Porto Alegre que atua no ramo de seguros e empréstimos consignados, e a Central Nacional dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (Centrape). As duas instituições, somadas, são alvo de pelo menos 1,1 mil queixas no site Reclame Aqui por cobranças indevidas.
A Polícia Federal abriu inquérito em abril para apurar essas irregularidades. A Superintendência de Seguros Privados (Susep) informou que está no segundo processo de fiscalização contra a Sabemi. O primeiro foi em 2017 e resultou em multas. O mais recente, de 2018, está na fase final e poderá levar à suspensão da operação de produtos.
Celi Scursel, 71 anos, é uma das lesadas. Moradora do bairro Vila Nova, em Porto Alegre, a aposentada pelo INSS descobriu que era "associada" da Centrape quando a instituição já tinha feito 16 retenções no seu salário, de fevereiro de 2018 a maio de 2019, período em que lhe tomaram o valor de R$ 612. As prestações começaram em R$ 30 e, agora, estão em R$ 52.
— Nunca ouvi falar em Centrape. Não sei o que é. Jamais assinei contrato de seguro, não autorizei absolutamente nada. Não sei como conseguiram meus dados, mas vou lutar pelo ressarcimento — garante Celi, que faz bicos de cuidadora de idosos para complementar a renda mensal.
O Grupo de Investigação da RBS (GDI) se infiltrou por semanas em seis grupos de WhatsApp integrados por corretores financeiros de todo o Brasil, obteve acesso a representantes, executivos e ao software da Sabemi em que são registradas as propostas de seguros da Centrape.
Foi possível comprovar que parcela dos produtos supostamente contratados por aposentados é fraudada a partir da falsificação da assinatura deles. No ramo, o golpe é chamado de "piloto automático", cujo mecanismo consiste em usar documentações de arquivos para inserir a cobrança do seguro na conta das pessoas sem que elas saibam. O material foi apresentado em GaúchaZH e no Fantástico, na RBS TV, na noite deste domingo (16).
Morador do Rincão do Cristóvão Pereira, um recôndito distrito de Mostardas, no litoral sul gaúcho, o agricultor aposentado Alvaro Machado Noveli, 77 anos, foi vítima de falsificação da sua assinatura. Por cerca de um ano, o idoso, que recebe do INSS um salário mínimo, teve descontada a "mensalidade" de R$ 18,74 em favor da Centrape. Os abatimentos só foram descobertos porque o enteado de Noveli precisou, certa vez, levar os contracheques ao banco.
— Até hoje não sei o que é Centrape — lamenta o aposentado, que mora em uma casa de madeira com tinta descascada.
Ele decidiu, então, ingressar com ação judicial para reaver os valores descontados e requerer dano moral. No processo, a Centrape se defendeu com a apresentação da ficha de adesão do associado, com a suposta assinatura de Noveli. O advogado Edinei Souza Machado pediu ao juiz de primeira instância uma perícia grafoscópica, no que foi atendido.
O laudo, dotado de fé pública, foi enfático ao afirmar que a assinatura de Noveli era falsa. A verdadeira é trêmula, enquanto o documento forjado da Centrape apresentava letra arredondada e emendada.
"A suposta firma inserida no documento que ensejou os descontos em favor da ré foi falsificada. (...) Infelizmente, não é incomum atualmente quadrilhas especializadas em lesar pessoas de poucas luzes e parcos rendimentos utilizando-se de expedientes como o desenhado no presente caso", registrou, em sentença, o juiz Rogério Kotlinsky Renner, da comarca de Mostardas. O processo já tramitou em segunda instância, sendo mantida a condenação da Centrape e a indenização a Noveli.
Na Justiça do Rio Grande do Sul, existem processos semelhantes contra a Centrape e a Sabemi, movidos por aposentados que alegam nunca terem autorizado descontos nos seus vencimentos. Situação similar se repete no resto do país. Em Campo Grande (MS), Ilto Rosa Delgado, 69 anos, por exemplo, tenta restituir o total de R$ 525 que a central nacional reteve do salário dele. A pedido da reportagem, o perito em grafoscopia e documentoscopia João Henrique Saibel Rodrigues analisou a suposta firma de Delgado na proposta de adesão à entidade.
— É uma assinatura grosseiramente falsificada, que utilizou um modelo não mais em uso pela pessoa. Usaram um modelo mais antigo, provavelmente oriundo de algum documento de identificação antigo da vítima — assegurou o perito.
Há casos em que os idosos demoram a perceber a retenção mensal do valor e, quando isso ocorre, são orientados a telefonar para unidades de call center. Enquanto isso, agenciadores, representantes e empresas acumulam recursos. De janeiro de 2017 a abril de 2019, a Sabemi Seguradora arrecadou R$ 565,5 milhões em "prêmio direto". No seu site, a companhia informa ter cerca de 900 mil clientes.
Tanto a Sabemi quanto a Centrape disseram não compactuar com qualquer tipo de fraude (leia mais no final desta reportagem).
"Se tiver carteira de R$ 20 mil por mês, vai ficar em casa só deitado"
Os seguros para aposentados, no caso específico, são ramificações do empréstimo consignado, aquele em que as parcelas de pagamento são retidas no contracheque. As financeiras detêm grandes volumes de arquivos com documentos de clientes, acumulados ao longo de anos de atuação na concessão de empréstimos, acrescidas de outros bancos de dados, que são vendidos em grupos de WhatsApp de corretores.
As carteiras incluem informações pessoais e cópias do registro geral (RG) ou da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Tendo este conjunto, representantes que aderiram às práticas fazem a digitação dos dados dos aposentados em softwares bancários no chamado piloto automático (uso de documentos de arquivos para inclusão da cobrança do seguro na conta sem que a pessoa saiba).
Depois, vem a etapa mais importante: a chamada "formalização", momento em que a assinatura é falsificada. Os sistemas das instituições são conveniados com o INSS, o que lhes permite transmitir eletronicamente a adesão fraudada ao seguro. Por fim, depois de receber a documentação, o INSS chancela digitalmente o desconto mensal no contracheque do aposentado.
O seguro é rentabilidade, vai te dar segurança. Até o final do ano, se você tiver uma carteira de R$ 20 mil por mês, vai ficar em casa só deitado, não vai ser preciso ficar vendendo mais
ALESSY DE ALMEIDA CARDOSO
Representante em Teresina (PI)
O passo a passo foi ensinado e narrado à reportagem por diversos artífices deste negócio milionário. Um deles é Alessy de Almeida Cardoso, proprietário da Alupe Promotora, localizada em Teresina (PI). A empresa de Alessy digita seguros para aposentados no "piloto automático", tendo funcionários especializados em falsificação de assinatura.
Em contato com a reportagem, que se passou por interessada no mercado, Alessy usou a Armais Promotora, empresa do seu irmão Rodrigo Silva Cardoso, para cadastrar um repórter do GDI como "agenciador", com direito a login e senha de acesso ao sistema informatizado da seguradora Sabemi, onde são incluídos dados de idosos para forjar a contratação de produtos, inclusive o seguro da Centrape. A Armais é representante da Sabemi no nordeste do Brasil, digitando seguros para aposentados no país inteiro. Na conversa em que decidiu cadastrar o repórter como "agenciador", função do início da cadeia em que se faz busca por documentos de clientes e digitações em troca de comissão, Alessy explicou o motivo de apostar nos seguros.
— O empréstimo consignado é um pouco traiçoeiro, uma hora você ganha e uma hora você perde. Vem contestação, vem fraude. Hoje, foco mais o seguro. E por quê? O seguro é rentabilidade, vai te dar segurança. Até o final do ano, se você tiver uma carteira de R$ 20 mil por mês, vai ficar em casa só deitado, não vai ser preciso ficar vendendo mais —explicou.
Aula de falsificação via WhatsApp
A vantagem do seguro é que, uma vez incluído no contracheque do aposentado, irá gerar pagamento de comissão ao agenciador, ao representante credenciado e ao banco todos os meses. Isso só irá parar quando o lesado conseguir se livrar da cobrança ou quando ele morrer. Por isso, as carteiras de seguros são cumulativas e geram dinheiro perene.
— E se der algum boró? Não dá em nada. A partir do momento em que der reclamação, a Sabemi tem uma mesa de retenção, um call center que vai mostrar os benefícios (do seguro, como sorteios de prêmios e descontos em farmácias). De 10 ligações que fazem para lá, apenas uma cancela. Estou digitando uma coisa sem o consentimento do cliente, mas a Sabemi diz que a responsabilidade é dela — narrou Alessy.
Por telefone, ele apresentou um funcionário da Alupe chamado Caio, responsável por ensinar os atalhos da digitação e da falsificação.
— A assinatura é feita a olho nu. Ou você pode tentar encobrir com o auxílio de uma lâmpada — demonstrou, via WhatsApp, o funcionário, que enviou foto de uma máquina com forte projeção de luz, a qual permite sobrepor a folha de adesão ao seguro à cópia da identidade do lesado.
Especialista em "formalização", Caio deu mais orientações.
— A assinatura não pode ter nenhuma rasura, tipo linhas duplas, que é quando você passa a caneta duas vezes. Linha tremida, essas coisas. Por isso que disse que é com prática. Se tiver Parkinson, pode esquecer — lecionou.
A Lei Anticorrupção, que entrou em vigor em janeiro de 2014, permite que empresas controladoras sejam responsabilizadas solidariamente por atos de suas subsidiárias ou vinculadas.
Questionado pela reportagem, o INSS respondeu que as instituições financeiras "respondem civilmente e criminalmente por qualquer irregularidade constatada". O órgão ainda disse que, caso confirmadas as falsificações, os idosos serão ressarcidos e as empresas terão seus convênios suspensos, o que inviabilizaria a continuidade da negociação de seguros para aposentados.
Como apuramos esta reportagem?
Desde o início de 2019, recebemos dezenas de contatos de leitores informando sobre descontos não autorizados nos contracheques de aposentados. Em março, iniciou-se a apuração. Se passando por um interessado no negócio fraudulento, o repórter obteve acesso a seis grupos de WhatsApp integrados por corretores de seguros de todo o Brasil. Nestes grupos, eram compartilhados relatos explícitos de como as fraudes eram realizadas. Passamos a contatar representantes bancários pelo país e verificamos junto a eles como eram feitas as falsificações de assinaturas para incluir no contracheque de aposentados descontos por seguros que eles jamais autorizaram. Ainda sem nos identificarmos como jornalistas, também nos aproximamos de executivos de contas, que confirmaram e deram mais detalhes das fraudes que lesam idosos.
Quais cuidados tomamos?
Nos grupos de WhatsApp, não fizemos manifestações, nos limitando à observação. Todos os contatos que fizemos foram individuais com os corretores e representantes. Quando tivemos acesso ao software da Sabemi Seguradora em que são incluídas propostas fraudadas contra aposentados, não fizemos a digitação de nenhum produto. Acessamos a ferramenta apenas como meio de comprovar que ali poderia ser selecionado o seguro associativo da Centrape para fazer descontos de um idoso de forma fácil e rápida. Não revelamos nossas fontes para evitar represálias a elas.
Contrapontos
O que diz o INSS
"O INSS realiza fiscalizações periódicas nas entidades conveniadas para comprovar a existência e regularidade dos formulários assinados pelos segurados com autorização expressa do desconto em seus benefícios. Em caso de discordância, o segurado poderá solicitar a exclusão do mesmo por meio de um requerimento entregue em qualquer agência da Previdência Social ou diretamente no sindicato ou associação ao qual é filiado.
Vale destacar que o segurado poderá ainda recorrer à ouvidoria do INSS para registrar sua reclamação. Após o encaminhamento do requerimento pelo segurado, o desconto é suspenso imediatamente.
As entidades respondem civilmente por qualquer irregularidade constatada. Comprovada a inexistência de autorização, o INSS promoverá a exclusão da base de filiados dessa entidade e restituirá os valores ao beneficiário, devidamente corrigidos. Comprovadas as irregularidades, as providências cabíveis serão adotadas, com responsabilização nas áreas cível e criminal, se for o caso."
O que diz a Sabemi
"A Sabemi é uma empresa que atua há mais de 45 anos no mercado de seguros, tem 700 funcionários e oferece serviços de seguros e assistência financeira. Com sede em Porto Alegre e representações em todo o Brasil, a Sabemi é uma empresa idônea, que conta com os mais modernos controles internos, gestão de riscos e prevenção de fraude. Quando tem ciência de alguma irregularidade, toma as providências cabíveis, legais e administrativas, culminando até em denúncia na polícia e ação judicial.
A empresa não compactua com nenhum tipo de fraude. E, desde 2018, vem adotando medidas mais rígidas contra qualquer ilicitude:
- Descredenciou o Clube Pampa.
- Contratou uma das melhores empresas de perícia do mercado, a Hárpia, para cuidar do processo de checagem de documentos e análise de assinaturas.
- Suspendeu, desde outubro de 2018, a recepção de novos afiliados da Centrape, para ajustar a operação às exigências de qualidade da Sabemi. Retornou às atividades de angariação de novos afiliados da entidade somente em maio deste ano.
- Passou a usar fotos de selfie para assinatura digital por meio do serviço de biometria facial.
- Passou a adotar o envio de mensagem de SMS de boas-vindas para todos os clientes novos antes de mandar a cobrança bancária ou do desconto em folha, para que o cliente possa confirmar se fez mesmo a aquisição de um produto da companhia.
- Começou a mandar também uma carta de boas-vindas para todos os novos clientes, criando assim um canal de comunicação e dando oportunidade de o cliente entrar em contato com a empresa por meio do telefone 0800 da Sabemi, para o caso de ele não concordar com a aquisição do produto e poder cancelar antes mesmo de ser enviada uma cobrança.
Em relação às acusações de falsificações de assinaturas, a Sabemi recebe as informações fornecidas com surpresa e indignação. Salienta que nunca recebeu denúncia sobre o alegado fato. A Sabemi está à disposição para auxiliar na apuração e solução do caso. A companhia esclarece ainda que tem uma parceria comercial com a Centrape, para quem fornece seguro de acidentes pessoais, prática comum no mercado de seguros.
Cabe ressaltar que a Sabemi possui 1,5 mil representantes de negócios que atuam de forma independente e que, embora não sejam funcionários da empresa, passam por treinamentos presenciais e à distância. Caso não cumpram com as cláusulas contratuais, a parceria é imediatamente interrompida.
Em relação aos sorteios da Centrape, a Sabemi explica que é mais uma fornecedora da instituição e que os sorteios estão ocorrendo regularmente. A Sabemi está à disposição para esclarecer e contribuir com informações e ações que possam auxiliar na redução de práticas ilegais no mercado."
O que diz a Centrape
"A Centrape é uma associação civil sem fins lucrativos. Fundada há 15 anos, representa os interesses dos aposentados e pensionistas afiliados. Ao todo, são 19 benefícios que podem ser verificados no site da entidade, na página no Facebook e no canal do YouTube. São benefícios reais, efetivos e de fácil acesso.
A Sabemi é mais um dos muitos parceiros que a entidade utiliza para disponibilizar benefícios e serviços de qualidade aos seus afiliados. Caso alguma das empresas contratadas não esteja cumprindo com o seu papel de bem atender o afiliado, é advertida, notificada ou substituída, dependendo da gravidade. No caso presente, tão logo tenhamos conhecimento dos casos relatados será feita uma apuração minuciosa e as providências serão tomadas.
Queremos desde logo esclarecer que a Centrape é tão vítima quanto o aposentado. No caso dessa investigação jornalística, a entidade afirma que não possui ingerência na captação de novos afiliados por terceiros. Mais: antevendo que sua relação com terceiros pode ser passível de fraudes, conta com moderno e atualizado programa de conformidade (compliance) desenvolvido para sua área de atuação e sustentado por dois pilares: 1) Evitar, ao máximo, a ocorrência de fraudes no momento da captação de possíveis novos afiliados por terceiros; 2) Identificar fraudes possivelmente cometidas por empresas que atuam na captação de afiliados e punir.
Para verificar falsificação de assinaturas, a entidade conta com apoio de empresa especializada em identificar fraudes. Funcionários são treinados para comparar assinaturas e reconhecer divergências. Os sorteios ocorrem regularmente e com a chancela da Susep, com contrato garantido pela Zurich Capitalização. Houve um recadastramento recente e a numeração foi atualizada. Em dois anos e meio, foram premiados 43 afiliados, com aporte de R$ 860 mil.
Reiteramos que a entidade se esforça por cuidar bem de seus 245,3 mil afiliados. O número de reclamações que a entidade recebe não chega a 1% do total de matriculados."
O que diz Alessy de Almeida Cardoso
Afirmou, por telefone, que não trabalha com seguros e não é dono da Alupe. Depois, desligou a ligação.
O que diz o Clube de Seguros Pampa
A reportagem tentou contato por telefone e foi até a sede do Clube de Seguros Pampa, onde foi recebida por um de seus representantes. A empresa, contudo, não se manifestou.
O que diz a Susep
"A Superintendência de Seguros Privados (Susep) já abriu dois processos de fiscalização em relação à Sabemi Seguradora. O primeiro, em 2017, foi concluído e apurou irregularidades nos procedimentos, o que resultou em multas à empresa. O segundo, em 2018, está em fase de conclusão e poderá resultar, além de multas, na suspensão da operação de produtos, uma vez que seja constatada a reincidência do problema ou novas irregularidades. O relatório de fiscalização já concluído foi encaminhado ao Ministério Público Federal (MPF) em 2018 e um novo relatório será encaminhado ao MPF após a conclusão do processo. A Susep informa que os processos de fiscalização citados são referentes ao produto de assistência financeira."
O órgão confirmou que é ilegal a cobrança de seguro sem a autorização expressa do beneficiado e informou que "poderá abrir novas fiscalizações".