
Em uma hora e meia de conversa, o presidente da Trensurb, David Borille, à frente do cargo desde fevereiro de 2017, e o superintendente de Desenvolvimento e Expansão, Eurico de Castro Faria, admitiram problemas de qualidade nos trens adquiridos em 2012 e "erros grosseiros" em alguns equipamentos. Das 15 composições, só quatro estão em uso – os modelos fornecidos pelas empresas Alstom e CAF já tiveram de ser evacuados mais de 100 vezes, conforme apurou o Grupo de Investigação (GDI).
Borille e Faria não estavam na direção da empresa na época da compra – Borille se aposentou em 2008 e foi convidado para retornar à presidência em 2017–, mas avaliam que a Trensurb fez um mau negócio e, que se fossem fazer a compra hoje, a executariam de forma diferente. Como as novas composições não funcionam, hoje a Trensurb gasta mais que o esperado em energia elétrica com os trens, o que desacelera investimentos em manutenção e na acessibilidade das estações. E o sistema opera no limite:
– Se não tivermos esses trens, vamos começar a não atender a grade de horários – avisa Borille, que conta ter esperado três meses por uma reunião com os fornecedores.
Veja os principais trechos da entrevista.
Por que os trens estragam tanto?
Borille – Os trens estragam porque apareceram problemas que talvez não foram previstos nem pelo fornecedor. A CAF diz que estes trens rodam no metrô da Espanha e que não há problema de infiltração de água, só que aqui eles estão operando a céu aberto. Problemas que eles não enfrentam lá, passaram a enfrentar aqui. A questão de infiltração no rolamento é de segurança para nós. Chamei os CEOs (diretores) da Alstom e da CAF no Brasil para encontrarmos uma saída. Solicitei em outubro e o encontro ocorreu apenas em janeiro. Eles propuseram uma alteração do componente que entra água, que é de fornecimento da CAF. A Alstom vai substituir por um componente dela. A Alstom promete que isso vai resolver o problema de infiltração, que é o principal.
Os trens foram projetados para uma pista subterrânea?
Borille – A CAF colocou o equipamento que tinha.
Faria – Antes do serviço ser contratado, eles receberam as condições da nossa linha. Eles sabiam que é uma linha a céu aberto. Não podemos nem entrar nessa conversa.
As empresas não cumpriram com as exigências de projeto da Trensurb?
Borille – Tu especifica o equipamento, mas não chega num nível de detalhe, que tem que usar uma vedação de tal tipo. Isso é o projeto executivo que aponta, que é o fornecedor que elabora. E o fornecedor coloca no trem aquilo que ele tem.
Com essa gama tão grande de problemas, o que houve? Falhas de projeto, fabricação, qualidade de peças?
Borille – Não acredito que seja falha de projeto, o cara pode ter colocado algo para nós que a céu aberto seria inadequado. Não creio que foi intencional.
É inegável que há problemas. Onde o senhor acha que está a falha?
Borille – Se tem falha, foi naquilo que o cara colocou para gente. Na qualidade do produto entregue.
Faria – Vejo alguns problemas: a caixa de graxa, por exemplo, apresenta problemas dimensionais mesmo estando novas. Vieram para cá e tiveram que ser retrabalhadas. É difícil de entender como uma peça nova tem problema dimensional. É um erro grosseiro. A tampa não encaixa. Quando tu compra um bem, como um trem, a gente acredita que um ajuste se supere. A questão que está pegando é a recorrência. Isso está deixando a desejar mesmo, não tem o que dizer.
A Trensurb teve problemas em solicitar troca de peças?
Faria – Se seguiu o contrato. No contrato tem condições de reparação de peças. No caso dessas que tem esse problema maior, eles já trocaram mais de uma centena de rolamentos. Cada rolamento custa R$ 7 mil, isso sem a mão de obra para colocar.
Qual a garantia que vocês têm que em dezembro os 15 trens estarão operando?
Borille – A garantia é deles. Mas a partir do momento que eles não cumprem o cronograma, serão multados.
A Trensurb está na mão do consórcio?
Borille – A Trensurb tem um contrato que une as partes. E vamos exigir o cumprimento do contrato.
A Trensurb perdeu poder de barganha já que já pagou mais de 90% dos trens. Isso interfere na forma como o consórcio lida com os problemas?
Borille – Normalmente na entrega de trens, esse índice de 90% normalmente está pago. Ninguém, porém, imaginou que pudesse acontecer isso.
A Trensurb comprou os trens a R$ 244 milhões, já quitou boa parte deste valor, hoje a maior parte dos trens estão parados há dois anos. Foi um bom negócio?
Borille – Olhando de fora, não foi. Mas tenho que olhar pela necessidade da empresa de que os trens operem. Se não tivermos esses trens operando, vamos começar a não atender a grade de horários. O usuário perde em qualidade e conforto.
Era necessário comprar os 15 trens?
Borille – É difícil entender a política da empresa na época (a compra foi feita em novembro de 2012). Não tenho informações sobre o que estava sendo decidido na época. Os trens japoneses que compramos no início da década de 1980 têm mais de 30 anos e estão envelhecendo. Para reformar trens, preciso ter outros trens rodando. Se eu usar uma grade em que eu preciso de trens duplos, consome uma frota maior. Não sei o que levou ao número, mas na época se falava na linha 2 (a linha do Metrô).
Hoje, com os 25 trens da série 100 (antigos), e tendo necessidade de renovar a frota, quantos trens compraria?
Borille – Precisaria de um estudo para dizer. Hoje oferecemos o máximo para atender o mínimo necessário. Estamos no limite.
Se fosse para fazer um ranking das piores licitações que já foram feitas, a compra dos trens estaria em que posição? (Borille foi presidente de todas comissões de licitações durante a implantação da primeira etapa da empresa, entre 1980 e 1983)
Borille – Se tivesse a possibilidade de comparar com o que aconteceu no período que eu estava na área de licitação, acho que esta daí não estaria no ranking daquela época (não teria sido feita). Ela não estaria no nível de qualidade dos equipamentos que a gente recebeu.
Se hoje existisse a linha 2 (o Metrô), os trens da série 200 estariam aptos a trafegar nela?
Borille – A ideia era essa. A especificação técnica seria a mesma.
Faria – É bom destacar que essa quantidade de trem não seria suficiente para atender a linha 2.
Se vocês hoje fizessem uma licitação para comprar novos trens, o que fariam diferente?Borille – Gosto de comprar liquidificador de uma fábrica que entregue ele inteiro. Não gosto de comprar motor de um e vaso do outro. Isso responde a pergunta? Se tu comprar um item de prateleira (todo do mesmo fabricante), a chance de ter problemas é menor.
Faria – Talvez modificaria as condições dos desembolsos, amarraria isso aos desempenhos, à performance do trem.
E com isso teriam mais poder de barganha?
Faria – Acho que seria uma boa alternativa.
Com o que vocês gastam a mais em energia elétrica, já que trens novos, mais econômicos, estão parados, quais investimentos vocês deixam de fazer em função disso ou que serviço estão preterindo?
Borille – Hoje é a manutenção dos trens da série 100 (os antigos), aquelas manutenções profundas. Não conseguimos tirar ele do sistema. Poderíamos melhorar as condições de acessibilidade das estações, por exemplo.
Quando o senhor cita que a manutenção dos trens da série 100 está sendo postergada, qual o prejuízo disso?
Faria – Hoje a situação nos obriga a usar mais o trem da série 100 do que se idealizou. Temos menos disponibilidade de fazer manutenção.
Borille – E possivelmente lá na frente quando for fazer a manutenção, ela terá um custo maior.
Foram identificadas diferentes falhas nos rolamentos das rodas, infiltração de água, vazamento em amortecedores, falta de vedação da caixa de graxa, deformação das bolsas de ar (responsáveis por garantir a estabilização do veículo), deterioração nos batentes laterais e problemas na fixação dos carros com o truque. Essa série de falhas não é inadmissível em trens caros, de marca conceituada no mundo todo e que possuem contrato de manutenção preventiva em vigor?
Borille –Não daria para admitir isso. Mas aconteceu. A gente não esperava que isso acontecesse.
O MPF aponta que a Trensurb, na qualidade de cliente do consórcio, poderia ter sido mais incisivo na cobrança de providências para o conserto dos trens. O senhor concorda?
Borille – Estamos cobrando da maneira que a gente pode, em cima do contrato. Não posso cobrar fora do contrato que tenho com eles. Mas o MPF tem mais poder que a Trensurb para fazer essa cobrança.
Por que a Trensurb ainda mantem pagamentos de manutenção preventiva à Alstom sendo que há dois anos um consórcio formado por esta mesma empresa faz a correção/conserto de trens que já foram adquiridos com problemas?
Faria – Por força de garantia, tu tens que ter alguém fazendo as revisões. Uma coisa é diferente da outra. A parte dos problemas que estão sendo consertados em garantia não é cobrada. Agora, as revisões são pagas em contrato de manutenção preventiva. A Trensurb não paga para trocar rolamento prejudicado, por exemplo.
Os novos trens deveriam consumir menos energia de tração – em torno de 30 a 40 %. Porém, segundo a Trensurb, de abril de 2016 – quando os trens pararam de circular – até setembro do mesmo ano houve um aumento de gasto energético de R$ 1,8 milhão. Hoje se gasta mais em energia elétrica sem os trens novos estarem rodando?
Borille – Hoje se gasta mais, isso é uma verdade. Nós vamos cobrar do consórcio o que um trem da série 100 consome a mais de energia elétrica.
Eventualmente peças são retiradas de trens parados para trens que estão em funcionamento? Há canibalização dos trens?
Borille – As peças são intercambiáveis. Como ainda não tem o fornecimento de peças concluído, se o trem está parado, eventualmente pode ser retirada uma peça que ainda não foi fornecida dentro de um lote de reposição. Mas canibalização não ocorre, nenhum trem é usado como almoxarifado para retirar a peça.
Hoje a Trensurb está satisfeita com o consórcio?
Borille – Não, não está satisfeita. Não é o que gostaria de ter deles. Eles poderiam se dedicar mais ao nosso contrato.