Em maio de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a lei que autorizava o uso da fosfoetanolamina como medicamento por "falta de evidências científicas" no combate ao câncer. Era o fim da controvérsia envolvendo a "pílula do câncer". A partir daquele momento, a substância começaria a ser comercializada pela empresa Quality Medical Line como suplemento alimentar. Agora, o consumidor pode estar sendo vítima de fraude com o mesmo produto. Exames realizados no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) constataram que cápsulas do lote nº 1701053 do suplemento vendido como se fosse fabricado à base do composto químico não contêm fosfoetanolamina.
As cápsulas foram testadas pelo Laboratório de Química Orgânica Sintética da Unicamp, referência internacional no ramo, a pedido do Grupo de Investigação (GDI) da RBS. Em outubro, o GDI foi procurado por Humberto Silva De Lucca, ex-sócio da Quality, que produz o suplemento. A empresa, que tem sede em Miami, pertence a um grupo de brasileiros. De acordo com De Lucca, o produto estaria sendo adulterado pelos fabricantes.
A avaliação na Unicamp apontou que o produto sequer contém fosfoetanolamina — princípio ativo indicado no rótulo da embalagem. Enquanto a fosfoetanolamina legítima se dissolve por completo em água, 96% do conteúdo das cápsulas analisadas restaram insolúveis. Mais da metade do material corresponde a excipientes — aditivos usados para aumentar o volume dos componentes e melhorar a absorção dos comprimidos, sem valor terapêutico e eliminados naturalmente pelo organismo. Os 4% restantes foram identificados como fosfato ácido de monoetanolamina, uma impureza tóxica, mas que, pela baixa concentração, não causa prejuízos à saúde.
Os testes foram realizados em novembro sob coordenação do pesquisador e professor titular do Instituto de Química da Unicamp, Luiz Carlos Dias, pós-doutor em Química pela Universidade de Harvard (EUA).
— Não tem absolutamente nada de fosfoetanolamina no lote que analisamos — assegurou o químico da Unicamp, que já palestrou sobre o composto em dezenas de conferências no país.
Possíveis investigações
No Brasil, a substância não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e, por consequência, está proibida sua comercialização no país. A Anvisa autoriza a importação apenas como alimento para consumo individual. Mesmo assim, pessoas seguem tomando o produto, seduzidas pelo suposto poder no combate a tumores.
A fosfoetanolamina sintética foi estudada por duas décadas no campus de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), no interior paulista, como droga potente no tratamento de neoplasias malignas. Ganhou fama como a "pílula do câncer", mas sua eficácia contra a doença nunca foi comprovada cientificamente.
Caracteriza propaganda enganosa se utilizar da mesma nomenclatura que sequer está contida no produto.
FLÁVIA DO CANTO
advogada, professora universitária e ex-diretora do Procon
— A história da fosfoetanolamina envergonha a ciência brasileira —disse Dias, pesquisador nível 1A (o mais alto) em química do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e membro titular da Academia Brasileira de Ciência.
A discussão da fosfoetanolamina no país, a partir de agora, pode sair da esfera acadêmica e ingressar no campo policial.
— Caracteriza propaganda enganosa se utilizar da mesma nomenclatura que sequer está contida no produto — observou a advogada e professora universitária Flávia do Canto, ex-diretora executiva do Procon-RS e do Procon de Porto Alegre.
O diretor de investigações do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), delegado Sander Cajal, afirmou que o caso pode motivar a abertura de inquérito por estelionato ou crime contra as relações de consumo.
O promotor Marcelo Tubino, da Promotoria Especializada de Combate aos Crimes de Lavagem de Dinheiro e Organização Criminosa, do Ministério Público, afirma que a situação pode configurar crime de adulteração de produto relacionado à saúde e promete agir:
— É crime, passível de ser classificado até como hediondo, dos mais reprováveis no ordenamento jurídico. Sem dúvida alguma, uma prática repugnante.
Contrapontos
O que dizem a Quality Medical Line e seus sócios:
Como a empresa avalia o teste que mostrou ausência de fosfoetanolamina em um frasco do produto?
"A Quality Medical Line não teve acesso ao laudo encomendado pela reportagem, o que impossibilita realizarmos avaliação técnica precisa do resultado. Não sabemos qual foi o método de análise utilizado, quais foram os limites de detecção e os limites de quantificação, entre outros fatores essenciais para correta avaliação. Caso a reportagem possa nos dar acesso ao laudo estamos à disposição para avaliação adequada."
O GDI enviou por e-mail para a Quality todas as informações sobre os tipos de testes: tamanho e peso das cápsulas, solubilidade e pH, detecção de amido, análise gravimétrica, solubilidade em água destilada (neutra), solubilidade em água destilada acidificada a pH~3, análise de ressonância magnética nuclear, análise de fluorimetria de Raio-X, e espectros de ressonância magnética nuclear de hidrogênio (1H-RMN) 400 MHz da fração solúvel em H2O. Também forneceu informações sobre os resultados detectados de acordo com o laudo fornecido pelo Laboratório de Química Orgânica Sintética da Unicamp.
"Cabe ressaltar também que a análise foi conduzida por Laboratório de Química Orgânica e não por Laboratório de Química Analítica regulado pela Anvisa e que segue os padrões da agência."
O Laboratório de Química Orgânica Sintética da Unicamp integra a Central Analítica do Instituto de Química da universidade, certificada pela Coordenação Geral de Acreditação do Inmetro para ensaios, de acordo com os requisitos da norma NBR ISO/IEC 17025, sob número CRL 0207.
"Mais ainda, não tivemos garantia da rastreabilidade do produto adquirido pela reportagem e se houve qualquer violação ou manuseio inadequado que assegure a correta condução da análise. A conduta correta teria sido permitir que a Quality ou algum órgão independente e idôneo fizesse todo rastreamento do produto adquirido. (...) Como prova da idoneidade do nosso suplemento, é essencial reforçar que a produção é feita nos Estados Unidos pela Florida Supplement, que tem todos os certificados exigidos pela legislação americana para fabricação e comercialização do suplemento."
O ex-sócio Humberto de Lucca afirma que a empresa estaria importando da China matéria prima de baixa qualidade. Qual a posição da Quality?
"Refutamos veementemente tal declaração. (...) a Florida Supplement tem todas as certificações exigidas pela legislação americana e segue rigorosamente a patente da fosfoetanolamina desenvolvida pelo grupo do professor Gilberto Chierice, do qual Marcos Vinicius de Almeida fazia parte. Tanto a produção para teste no Uruguai como a da Florida Supplement utilizaram e utilizam as mesmas matérias-primas e seguem a patente da fosfoetanolamina."
O suplemento da Quality cura câncer?
"O suplemento de forma alguma substitui os demais tratamentos indicados pela medicina, como a quimioterapia e a radioterapia, ou qualquer outro medicamento prescrito pelos médicos. A fosfoetanolamina é um bioimunomodulador que ajuda na regulação do sistema imunológico."
Por que Marcos Vinícius de Almeida chamou de "patifaria" a proposta de lançar a fosfoetanolamina como suplemento, e depois, se associou à Quality para vender a substância justamente nesse formato?
"Marcos Vinícius se manifestou contra o lançamento de um suplemento que resultasse na interrupção das pesquisas para produção da fosfoetanolamina como medicamento. Como as pesquisas tiveram continuidade, os sócios da Quality decidiram lançar o suplemento (...). A Quality é favorável à continuidade dos estudos e pesquisas clínicas em andamento."