Um bairro clandestino nasce e viceja em Alvorada, 11º município mais populoso do Rio Grande do Sul e 316º, entre os 497 do Estado, no ranking do índice de desenvolvimento humano (IDH), que mede a qualidade de vida. O loteamento Reprise IV leva o nome de seu fundador, o ex-vereador Clóvis Reprise (PSD). É o apelido pelo qual é conhecido Clóvis Nissola Vieira, que chegou a anunciar sua pré-candidatura a prefeito em 2016, mas desistiu após ser condenado pela venda irregular de terrenos.
Do alto da Rua Honório Lemos, no bairro Piratini, é possível enxergar a dimensão do loteamento: centenas de casas, novas ou seminovas, uma verdadeira cidade dentro da cidade. Não se trata de invasão. Tudo é área particular, loteada e vendida ilegalmente, asseguram o Ministério Público Estadual (MP) e a prefeitura de Alvorada. Na Procuradoria-Geral do Município (PGM) e na Secretaria Municipal do Meio Ambiente acumulam-se mais de R$ 150 mil em multas a Clóvis. A lista de notificações é variada:
– O empreendimento não tem licenciamento ambiental;
– O aterro feito para as casas alterou um banhado e vertentes;
– Para demarcação da área, foi derrubada mata nativa;
– Moradores jogaram lixo em leitos de água;
– A construção do loteamento cortou o barranco junto a torres de alta tensão, o que pode resultar na queda das estruturas.
Apesar da fiscalização, das multas e das condenações ao idealizador do Reprise IV, que chegou a ser preso, casas continuam surgindo no loteamento. O Grupo de Investigação da RBS (GDI) esteve lá três vezes entre agosto e novembro. Há venda de residências, feitas de forma direta pelos proprietários, e de lotes, comercializados em um escritório que funciona como imobiliária, no bairro Formosa.
Falta de estrutura leva perigo aos moradores
Situações como a do Reprise IV, em Alvorada, são comuns na Região Metropolitana, numa proliferação de condomínios construídos à margem da lei. Alguns surgem da noite para o dia, às custas de depredação do ambiente. É o que comprovou o GDI, ao gravar acertos de compra de terras sem garantia de registro, em locais onde sequer há água e luz legalizadas.
Em Alvorada, são pelo menos 20 áreas irregulares. Mas cada grande cidade gaúcha possui outras dezenas de loteamentos privados ilegais ou áreas públicas invadidas, estima o promotor de Habitação e Ordem Pública da Capital, Cláudio Ari Melo.
– Em Porto Alegre, temos em torno de 650 áreas ocupadas ou loteadas irregularmente – informa Melo.
Em Gravataí, foram descobertos 30 sítios transformados em residenciais urbanos. Em Morungava, a localidade de Fazenda Conceição estava virando um bairro. Enquanto a legislação proíbe a divisão de terras rurais em áreas menores do que o módulo mínimo (na região, 20 mil m2), ali virou rotina o fracionamento em terrenos de 1 mil m2 ou 1,5 mil m2.
Além do corte de árvores nativas e de alterações sem licença ambiental em riachos e nascentes, esses loteamentos são feitos sem autorização das prefeituras. O GDI esteve em uma área de 13 hectares em Gravataí que seria dividida em 120 terrenos, tudo sem estrutura. Na área, embargada pela Fundação Municipal de Meio Ambiente, havia sido aberto um poço cuja obra não observou nenhuma norma técnica, o que traz riscos de contaminação.
– As pessoas tiram água no mesmo aquífero em que se joga esgoto – critica o biólogo Jackson Muller, diretor-presidente da fundação, alertando ainda que a oferta de terrenos nessas condições, muitas vezes, é fruto de golpes.
Compradores perdem economias de uma vida
Uma das vítimas da especulação imobiliária ilegal na cidade é o comerciário Francisco Barcarolo dos Santos. Ele gastou todas suas economias, R$ 30 mil, na compra de um lote de terras e construção de uma casa no Rincão da Madalena, área de matas em Gravataí. Os vendedores disseram que ali sairia um condomínio privado.
– Prometeram toda a infraestrutura, com luz, esgotamento sanitário, portão, pórtico de acesso, controle remoto para cada morador – conta Santos.
O sonho do comerciário se desmanchou quando uma equipe da prefeitura embargou o loteamento porque a área teve mata cortada e uma nascente de água aterrada. Santos perdeu todo o dinheiro, ficou sem a casa e, pior, não tem de quem cobrar. Os vendedores sumiram.