O teor de um telefonema captado durante as investigações da Operação PhD é uma das provas que a Polícia Federal (PF) tem para sustentar que o médico Hêider Aurélio Pinto teria fraudado um mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em 2015, Zero Hora publicou a reportagem "Mestrado sem frequência" revelando a suspeita de que Hêider, então funcionário do Ministério da Saúde, ganhara título de mestre em Saúde Coletiva sem frequentar o número suficiente de aulas em Porto Alegre.
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Foi essa suspeita que embasou a abertura de inquérito pela PF, que há uma semana resultou na deflagração da Operação PhD. A investigação acabou por descortinar um cenário bem mais amplo de fraudes envolvendo bolsas de estudo de programas ligados à Escola de Enfermagem da UFRGS. São quase R$ 6 milhões desviados desde 2013 com benefícios pagos a falsos alunos ou a prestadores de serviço com contratação direcionada.
No caso de Hêider, indícios da fraude no mestrado teriam começado a surgir quando ele passou a pleitear uma vaga de doutorado na UFRGS. Com a troca de governo no país, Hêider foi exonerado, em maio, do cargo de secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde no Ministério da Saúde. Mudou-se para Porto Alegre e seguiu ligado ao principal grupo investigado nas fraudes, especialmente ao professor Ricardo Burg Ceccim, que era coordenador do mestrado em Saúde Coletiva quando Hêider obteve o título, e que agora foi preso na Operação PhD.
A ligação que reforçaria as suspeitas de que dados sobre a frequência de Hêider foram modificados por orientação de Ceccim ocorreu em 26 de outubro e foi gravada com autorização judicial. Os interlocutores são Ceccim e outra pessoa presa na operação PhD, a servidora da UFRGS Marisa Behn Rolim.
Ceccim estaria reclamando para Marisa que Hêider concorreu a uma vaga no doutorado em Sociologia e não foi aprovado porque na seleção constataram faltas dele no histórico do mestrado em Saúde Coletiva.
Confira trechos do diálogo
Ceccim - No caso do episódio Hêider. Desde lá nós discutimos essas presenças, né, ausência do critério frequência em toda a pós, na pós-graduação, certo?
Marisa - Sim.
Ceccim - E eliminamos isso dos históricos e de todos os lugares também.
Marisa - Sim. Tanto que os professores ainda colocam, mas quando a gente vai fazer o diploma a gente vai entrando lá e vai tirando, né.
Ceccim - E aqueles diplomas da turma 2012/13 a gente fez isso cuidadosamente. Eliminou de todo mundo, não foi?
Marisa - É para ter feito, né. O que pode ter acontecido é que alguém pode ter tirado um histórico no sistema antes de a gente ter tirado. Mas no final aquele é para ter feito todos sem nada, né, nós conferimos todos.
Ceccim - E qual é minha questão agora! O Hêider concorreu para o doutorado lá na Sociologia. E ele pediu para a (cita o nome de uma servidora) um histórico atual para levar para o processo seletivo.
Marisa - Sim.
Ceccim - E ele leva o histórico para o processo seletivo e, na entrevista, o professor esse perguntou para ele como é que ele tinha reprovação por falta no mestrado dele, se ele então frequentava ou não frequentava aula. Agora, como é que tinha reprovação por falta no histórico escolar dele?
Marisa - Mas, Ricardo, tu lembra que a gente combinou de deixar uma disciplina ou duas com reprovação pra ficar bom assim que aparecesse que ele não foi totalmente, né...
Ceccim - Não, a gente falou isso, mas depois a gente trabalhou com "não vai constar" porque ele vai ser o único aluno da turma de 2012 que teve reprovação por falta.
Marisa - Sim.
Ceccim - Nenhum outro aluno teve. Eu me lembro de todos exceto dele.
Marisa - Pois é...
Ceccim - Teve um momento que a gente falou isso, mas quando a gente mandou até a impressão que eu tenho é que até o currículo que nós botamos no processo para o Ministério Público, quando eles pediram para documentar, porque a gente não queria botar e aí (ininteligível) pela Justiça tive que botar, que eu saiba a gente colocou um histórico que não tinha reprovação.
Marisa - É que quando tu pede o histórico, tem a opção de pedir só aprovados ou todo o histórico, né. De repente, quando pediu lá a pessoa pediu todo o histórico, por isso que saiu as faltas. Ele já entregou o histórico?
Ceccim - Ele já entregou e o pior é que as (ininteligível) hoje eu não estou nem entendendo, eu estou agora completamente confuso com esse negócio. Porque se nós juntamos isso de todo mundo, como é que ainda tem histórico que ainda aparece isso? E ainda mais justamente dele, quer dizer, o dele quanto mais históricos diferentes tem, pior é. E agora ainda tem o histórico dele que tá lá no DPG (PPG) de Sociologia com chance de fotografia, de xerox, de tudo.
Marisa - É, eu teria que entrar no pós-grad e dar uma olhada Ricardo. Eu tenho essa lembrança que a gente falou em deixar parece que duas disciplinas pra não parecer que a gente deu presença, que a gente deu aprovação em tudo. Que alguma disciplina ele não compareceu e tal, né.
A conversa deixa claro que informações do histórico de Hêider foram modificadas, inclusive, para dar resposta ao Ministério Público Federal (MPF) que, depois da publicação da reportagem de ZH em 2015, chegou a abrir um expediente para verificar o caso. Ceccim também demonstra preocupação com o fato de existir mais de uma versão do histórico de Hêider e de uma delas estar em departamento do curso de Sociologia, podendo ser copiado, o que indicaria haver algo a ser escondido.
Depois de reprovado na tentativa de doutorado em Sociologia, Hêider não desistiu. Concorreu novamente e acabou aprovado no doutorado 2017 em Políticas Públicas, na UFRGS, conforme consta no site da universidade. Hêider foi alvo de condução coercitiva na sexta-feira para prestar depoimento à PF e já está indiciado no inquérito da Operação PhD.
O mestrado
Na série de reportagens "Universidades S.A.", Zero Hora revelou a suspeita de que Hêider Aurélio Pinto havia sido beneficiado com título de mestre em Saúde Coletiva, na UFRGS, sem ter frequentado as aulas necessárias em Porto Alegre.
O coordenador do mestrado era o professor Ricardo Burg Ceccim, e o orientador, o professor Alcindo Ferla. Os dois são investigados e foram presos na Operação PhD, que apura desvio de valores de bolsas de estudo em programas ligados à área de ensino de Saúde Coletiva.
À época da reportagem, Hêider ainda atuava no Ministério da Saúde. Levantamento feito por ZH mostrou que em função de compromissos oficiais da pasta ele não poderia ter tido a frequência suficiente para aprovação. Comparando informações das disciplinas com dados de viagens de Hêider no Portal Transparência, ZH constatou que em pelo menos 42,6% dos dias de aula ele estava em viagens pelo país. Caso tivesse ido a todas as outras aulas, atingiria 57,4% de frequência geral do curso, enquanto a universidade exige 75% de frequência em cada atividade.
Com acesso ao histórico de Hêider na época, ZH verificou que ele havia tido frequência de 100% em sete das 13 disciplinas cursadas e que havia tirado conceito A em todas as matérias. A assessoria de Hêider no Ministério da Saúde, à época, contestou os dados apresentados por ZH, mas se negou a mostrar o que seria o histórico correto do médico.
A coordenação do mestrado também sustentou, à época, que Hêider havia preenchido todos os requisitos para obter o título e contestou dados do histórico obtido por ZH. Ainda assim, não revelou o que seria o histórico correto do aluno nem informou que atividades externas ele teria feito para compor carga horária a fim de compensar eventuais faltas.
Contrapontos
O que diz Jorge Luiz Garcia de Souza, advogado de Hêider Aurélio Pinto
"Nós ainda não recebemos cópia do inquérito. Mas essa situação o Hêider explicou para a delegada com absoluta tranquilidade e garantia de que a conversa não tratou de ilícito e não tem o conteúdo ilícito atribuído a ela. Ele explicou que tradicionalmente a UFRGS apaga as reprovações dos alunos, não costuma colocar no histórico, só colocando a carga horária aprovada. Ficou demonstrado que não há ilícito."
O que diz Karla Sampaio, advogada de Ricardo Burg Ceccim
"Existe a opção de imprimir o diploma com todas as disciplinas, incluindo as em que não houve aprovação. No caso de Hêider, houve uma combinação, até por causa de uma investigação que já tinha ocorrido, de que deveriam constar todas as disciplinas, inclusive as em que ele não foi aprovado. Foi até um excesso de zelo."
O que diz a UFRGS
"Cada programa de pós-graduação possui critérios específicos para seleção de seus estudantes, que incluem análise de currículo, anteprojeto, entrevista, prova teórica, enquadramento temático, e outros, variando em cada curso. As seleções são reguladas por editais publicados nas páginas dos cursos. Esses documentos regulamentam o peso de cada componente da seleção e os critérios de avaliação. Os programas de pós-graduação selecionam projetos que se adequam às linhas de pesquisa em andamento, com afinidade com os trabalhos realizados pelo programa, metodologias e abordagens teóricas. A seleção, então, leva em conta esses critérios e o histórico do estudante, de modo a verificar as competências do aluno a realizar a pesquisa. Além disso, a concorrência varia de acordo com cada programa, a partir da avaliação da CAPES, reconhecimento nacional do programa, linha de pesquisa e orientador. Pareceres individuais que fundamentem a seleção ou não podem ser solicitados pelo candidato."