Você provavelmente já ouviu "Mas tchê, só se fala noutra coisa" ou então o "Bah, velho, não me faz te pegar nojo". Estes são alguns dos bordões mais conhecidos do Guri de Uruguaiana e do Magro do Bonfa, personagens criados por dois humoristas gaúchos que há anos arrancam gargalhadas não só de seus conterrâneos, mas também de gente que vive em outros cantos do Brasil. Por meio do bom humor e do talento, Jair Kobe e André Damasceno, assim como outros artistas do Rio Grande do Sul, fazem sucesso apresentando elementos da cultura gaúcha e porto-alegrense — como o hábito do churrasco e a fala conjugada no "tu"— a públicos que nada tem a ver com o bairro Bom Fim ou o Alegrete.
A figura gaudéria de bombacha, bigode grosso e lenço vermelho no pescoço chegou aos palcos dos teatros em 2001, mas Jair Kobe já carregava na bagagem a experiência que adquiriu com o grupo vocal Canto Livre, formado na década de 1980. Cantando sobre as coisas do Rio Grande do Sul, mas misturando características do nativismo e do pop, o grupo se destacou em festivais de música no RS e ganhou projeção nacional com a participação no Festival dos Festivais da Rede Globo, em 1985.
— Era uma forma de levar a música gaúcha para um segmento mais amplo: eram jovens, universitários, porto-alegrenses cantando música e falando sobre o RS, mas a gente atingiu um público mais jovem e que não necessariamente consumia nativismo. Por isso comparo o Canto Livre com o Guri de Uruguaiana, que também tem essa característica: o público dele não necessariamente é gaúcho, gauchesco ou curte as tradições, mas vai ao espetáculo pelo humor e, através do humor, toma conhecimento da cultura gaúcha — afirma Jair.
A formação musical de Jair é a base que lhe dá segurança para produções audiovisuais como o The Guritles, vídeo que soma mais de 1,2 milhões de visualizações no YouTube. Nele, o Guri e mais três músicos fazem uma paródia de Help, dos Beatles, com os versos do Canto Alegretense. A música composta por Nico e Bagre Fagundes também foi cantada no ritmo de Gangnam Style, sucesso do sul-coreano PSY em 2012.
Segundo Jair, as paródias, feitas com o cuidado de quem entende de música, estão entre os principais elementos que ajudaram a demarcar o espaço do Guri de Uruguaiana na internet. Somados, os perfis no Facebook, Instagram e YouTube, acumulam 4,4 milhões de "perseguidores", como gosta de chamar, localizados em diversos pontos do globo. E foi esse território consolidado no mundo virtual que o ajudou a manter-se trabalhando em meio à pandemia.
— Tenho uma história de internet que vem desde 2008, estou nessa parada há muito tempo. Atingi um milhão de seguidores no Facebook em 2013, coisa que ninguém tinha. Quando era tudo mato eu já estava lá, construindo um alberguezinho. Aí, quando veio a pandemia, esse trabalho na internet permitiu que eu continuasse sobrevivendo através das mídias sociais — afirma o humorista.
Embora o personagem criado por Jair seja uma caricatura do "gaúcho raiz", ele acredita que há espaço para diferentes perfis de humoristas gaúchos — como por exemplo os que fazem stand-up comedy — apresentarem nacionalmente espetáculos que serão vistos com carinho.
— Essa característica de falar dos nossos costumes e de ter o Rio Grande do Sul como bandeira é do perfil do meu personagem. Eu faço isso, mas outros humoristas vão trabalhar dentro dos seus universos e podem muito bem se divertir e ser felizes. Trabalhar com humor é muito bom. É muito compromisso, mas o dia de trabalho é divertido — explica Jair.
"Não me faz te pegar nojo!"
Uma das figuras que abriu caminho para os talentos gaúchos Brasil afora — sendo um dos primeiros a "cruzar o rio Mampituba", como ele define — é o humorista André Damasceno. O porto-alegrense criou o irreverente Magro do Bonfa, personagem que chamou atenção de ninguém menos que Chico Anysio e que lhe rendeu uma vaga no elenco de peso da Escolinha do Professor Raimundo, da Rede Globo, na década de 1990.
— Teria tudo para dar errado, a começar pelo nome, Magro. Eu não sou magro e o termo "magro" só existia na grande Porto Alegre. "Bonfa" eles não sabem que é o bairro Bom Fim, de Porto Alegre. Mas deu certo, fui ficando amigo de um membro da escolinha por vez e me enturmei. O que ajudou o Magro foi que o carioca adora o nosso sotaque, eles acham engraçado e tem carinho pelo gaúcho — afirma André.
O personagem que foi o pontapé inicial da carreira do humorista foi inspirado em um de seus alunos. Antes de ser ator, André, que é formado em Engenharia Civil, era professor de matemática em um cursinho pré-vestibular, onde deparou com um aluno desajustado, de fala arrastada, sotaque característico da Capital e inteligente, ao seu modo.
— Ele deveria ter sido um grande aluno, conhecedor de física, matemática, mas ele meio que misturava os conhecimentos das matérias. Um dia dei equação de segundo grau, perguntei se ele tinha entendido e ele: "O negócio é o seguinte cara, se eu soubesse que eu tinha entendido, eu saberia. Se eu não soubesse, eu também saberia. O problema é que eu tô na dúvida". A partir daí eu comecei a criar textos inspirados nele e surge o Magro do Bonfa — diz o humorista.
Damasceno vem de uma família de imitadores: ele conta que, quando era criança, seu pai imitava tão bem a voz do veterinário do cachorro da família, que causava pânico no bicho. Já a avó entretinha o neto imitando a voz das vizinhas. O dom para a imitação foi aproveitado pelo humorista no encenar de personalidades como Paulo Sant'Ana, Clodovil e Leonel Brizola. Entre 2003 e 2015, André interpretou Lula no Zorra Total, em esquetes que tiveram como pano de fundo tanto a vida como presidente do Brasil como o cotidiano fora do Palácio da Alvorada.
Hoje, além dos teatros, o foco de André são as palestras e os espetáculos fechados para empresas. Também trabalha na construção de um sonho: realizar o primeiro Festival Nacional de Humor de Canoas, evento que está planejando junto à prefeitura do município e que ocorreria uma vez ao ano. O objetivo é abrir caminho para novos talentos locais e nacionais da comédia.
— O humor é importante para a qualidade de vida das pessoas, a risada cura. E os nossos humoristas estão conseguindo chegar ao nível nacional. Eu fui o primeiro a cruzar o Mampituba e nomes como o de Cris Pereira, Jair Kobe e Paulinho Mixaria hoje fazem show no país inteiro — explica André.