Homenageada de 2021 dos Festejos Farroupilhas, a celebração da história e dos feitos da heroína Anita Garibaldi é também um gesto de reconhecimento ao trabalho e ao protagonismo da mulher na tradição e na construção da identidade do Rio Grande do Sul. Neste ano é comemorado o bicentenário de nascimento de Anita.
A conquista de espaços de destaque dentro da tradição por mulheres está em curso: em 2021, o RS tem Liliana Cardoso Duarte como a primeira patrona negra dos Festejos Farroupilhas. Também neste ano, o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) tem metade da diretoria composta por mulheres e, entre 2020 e 2021, foi liderado pela primeira presidente mulher, Gilda Galeazzi.
O relato das mulheres ouvidas para essa reportagem é de que este reconhecimento do papel das mulheres no tradicionalismo é fruto de um processo lento, mas que está em ritmo crescente. É inspirado em Anita e puxado por figuras como patroas de CTGs, patronas de Festejos Farroupilhas, diretoras de entidades, intérpretes da música nativista e pesquisadoras da nossa história.
Declamando por igualdade
A patrona dos Festejos Farroupilhas de 2021, Liliana Cardoso Duarte, tem 43 anos e é a primeira mulher negra a ocupar o cargo. Dona de uma voz potente, a porto-alegrense tem uma trajetória reconhecida como declamadora, radialista, mestre de cerimônias e apresentadora de festivais de musica nativista. Quando observa o todo, no entanto, Liliana avalia que a participação das mulheres em posições de liderança da cultura gaúcha ainda é restrita.
– Apesar de ficarem por muitos anos nos bastidores, as mulheres sempre pautaram grandes movimentos, sendo espinha dorsal em congressos, convenções, encontros de patrões. Elas sempre estiveram no movimento, mas ainda é muito ínfima a participação em espaços relevantes. O movimento tem seus 60 anos e há pouco elegemos a primeira mulher. É de se pensar o porquê de tanta demora para ter a mulher na linha de frente, e não ao lado de seu esposo, patrão ou presidente. Aos poucos, estamos ocupando esses espaços, mas ainda muito vagarosamente – afirma Liliana.
A declamadora mais premiada da história do Rio Grande do Sul começou sua vivência em CTG aos oito anos. Foi com essa idade que Liliana fez sua primeira declamação, com a poesia Olhos do Negrinho, de Dimas Costa, falando daquela que seria uma das principais bandeiras da sua trajetória no tradicionalismo, a igualdade.
– Já naquela época pautava a escravidão, o sofrimento do negro. Quero um movimento com liberdade, igualdade e humanidade. Um movimento que seja agregador, coletivo e cooperativo, e que possamos contar cada parte da história sem segregação, e sim com união neste processo transformador de igualdade de gênero, raça e de credo.
Na letra da história
A história da mulher gaúcha é o tema de pesquisa da escritora Elma Sant'Ana há 30 anos, motivada pela vontade de preencher a lacuna da literatura referente a personagens femininas profundamente conectadas à origem e ao desenvolvimento do Estado. A gaúcha de Triunfo já publicou 11 obras dentro desta temática, sendo que sua maior paixão é a "menina dos pés descalços de Laguna", a catarinense que fez história no Rio Grande do Sul e que encorajou Elma a fundar o Instituto Anita Garibaldi.
– Anita seguiu os seus sonhos. Esses dias uma autoridade até disse: "Se não fosse Garibaldi, Anita não existia". Existia. Anita sempre teve luz própria. Era uma criança pobre que andava na beira do mar, sempre questionando as coisas, gostava de saber o que estava acontecendo. Ela era uma heroína por dentro, mas não tinha tido oportunidade. No momento em que conheceu a pessoa que ela realmente amou, ela seguiu seu coração, lutou e tocou pra frente os seus ideais.
Em 2017, "sem ter sequer um vestido de prenda", Elma foi patrona dos Festejos Farroupilhas do RS, exemplo das diferentes formas de se dedicar ao tradicionalismo e de trabalhar pela cultura do Estado. Em 2021, a escritora foi escolhida presidente da Comissão do Bicentenário de Anita Garibaldi, celebração decretada pelo governo do Estado que tem promovido eventos virtuais e presenciais em todo o território gaúcho, em memória da guerreira.
– O fato de ser escolhido o ano de Anita neste ano deu muita força para as mulheres, que estão se sentindo mais valorizadas. Quando é que uma mulher foi homenageada dentro do tradicionalismo? Esse reconhecimento ao protagonismo feminino foi muito lento e sempre a mulher exerceu um papel bastante secundário, então vejo com bons olhos que elas estejam agora com muita força. As mulheres estão muito poderosas e Liliana Cardoso é um exemplo disso tudo. Ela me diz: "Eu sou uma Anita negra, eu sou uma Anita farrapa" – afirma Elma.
Pioneirismo
Criado em 1966, o MTG teve a sua primeira presidente mulher na gestão de 2020-2021. Gilda Galeazzi, natural de Passo Fundo, já levava o pioneirismo como marca da sua biografia, tendo sido a primeira mulher a coordenar a 7ª Região Tradicionalista, entre 1996 e 2004. Depois, teve uma segunda passagem pelo cargo, entre 2011 e 2019.
Ela relata que sempre conseguiu liderar e ser respeitada pelos seus pares, mas recorda que, principalmente durante a primeira gestão, teve o desafio de ser aceita como alguém que transitaria por espaços diferentes daqueles destinados às mulheres até então:
– Naquela época, mulheres não tinham muito acesso às demandas da entidade, ficavam mais com a limpeza e a cozinha do CTG. Foi um processo de abertura muito difícil até eu conseguir colocar que estava ali para trabalhar pela tradição gaúcha, era uma época de muito preconceito vindo dos homens e das mulheres.
Gilda acredita que as mulheres no tradicionalismo, inclusive ela, aprenderam muito com os homens e que hoje é possível um movimento mais igualitário. Também entende que a forma como as mulheres tendem a tratar as pessoas está ligada à crescente conquista de espaço no movimento.
– As pessoas querem ser tratadas como gente, todos querem carinho e amor, e a mulher traz mais isso. Esse tratamento diferenciado é um dos motivos pelos quais as mulheres estão ocupando mais cargos – afirma Gilda.
Na gestão atual do MTG, presidida por Manoelito Savaris, metade da diretoria é composta por mulheres. Renata de Cássia Pletz faz parte do grupo como vice-presidente de Cultura. Natural de Triunfo e moradora de São Jerônimo, na Região Carbonífera, a professora de literatura de 41 anos nunca foi prenda de faixa, mas aos 21 já era diretora de cultura da 2ª Região Tradicionalista. Em 2018, integrou o conselho diretor do MTG, a primeira representante mulher da 2ª RT a fazê-lo.
Hoje, como participante da gestão da entidade, Renata tem confiança de que o tradicionalismo é capaz de transformar realidades ao ensinar princípios éticos e morais, valorização do povo rural e das coisas da terra. E acredita que, assim como a sociedade se transforma e se adapta a novas demandas, a entidade deve fazer o mesmo.
– O movimento acompanha a par e passo o caminhar da sociedade contemporânea. Ainda que seja uma instituição que tenha seus propósitos muito firmes e suas raízes muito sólidas, ele precisa acompanhar a evolução pela qual a sociedade passa. As mulheres estão na sociedade ocupando cada vez mais espaços e, no tradicionalismo, no movimento organizado, não seria diferente – afirma Renata.
Voz gaúcha e feminina
Para que a mulher encontre pertencimento também na música nativista, a cantora Analise Severo foi às redes sociais e perguntou aos seguidores, em sua maioria, mulheres: "O que você, mulher gaúcha, gostaria de ouvir a teu respeito nas letras das composições?".
Igualdade, respeito e reconhecimento foram as palavras que mais apareceram nas respostas e embasaram o projeto Bem Gaúcha, lançado em 2019 e sem data para terminar. Nele, Analise lança composições feitas por diferentes artistas acerca da mulher gaúcha, suas qualidades, feitos e anseios.
– A composição Descadeirada de Bonita valoriza não só a beleza externa, mas a beleza interna, a beleza daquela mulher que é inspirada na Anita, um filho no braço e a luta no outro, sendo esteio da família, mas laçando no rodeio, trabalhando fora – explica Analise.
Do alto de seus 28 anos de carreira, a cantora de Santa Maria reconhece a importância do seu trabalho e o de cantoras como Maria Luiza Benitez, Fátima Gimenez e Shana Müller em abrir espaço nos festivais de música para a voz e as composições das mulheres.
– A gente nota que as meninas já estão em maioria nos concursos de intérprete vocal. Elas estão incentivadas e isso tudo está servindo para cada vez mais aumentar esse numero de mulheres, que tem tanta capacidade e tantas habilidades – afirma a cantora.