
As perdas de vidas, de casas, de móveis e os traumas causados pela enchente de 2024 agora estão nas mãos de juízes e juízas estaduais do Rio Grande do Sul. Passados 10 meses do avanço das águas, o Judiciário estadual se vê diante de 8,4 mil ações movidas por pessoas e empresas que buscam, em geral, responsabilizar o poder público pelos danos sofridos e, consequentemente, receber indenizações.
Do total de processos sobre enchente contra prefeituras ou governo do Estado, 6,2 mil se referem exclusivamente a reparações por danos morais e materiais. As demais 2,2 mil ações podem conter questões de danos morais e materiais, mas também de auxílios emergenciais, entre outras demandas.
Até esta terça-feira (18), não há decisão judicial para as ações que buscam responsabilizar o poder público por danos morais e materiais. Esses processos ainda estão em fase de apresentação de provas. Assim, até o momento, ainda não foi julgada a questão principal – isto é, se alguma prefeitura ou o Estado é responsável por algum dano.
— A gente ainda não julgou o mérito das ações, se há responsabilidade do Estado, se há responsabilidade do município. Isso ainda não está definido. Eu diria que ainda no primeiro semestre deste ano devemos ter as primeiras decisões de mérito. Será logo — afirma o juiz Mauro Peil Martins, coordenador do Núcleo de Justiça 4.0 - Enchentes 2024, grupo de magistrados que concentra todos os processos sobre o tema no Estado.
Caso as primeiras decisões digam que o poder público é responsável, a tendência é de que haja uma série de novas ações individuais buscando o mesmo resultado.
— Uma vez que esses processos, com relação ao mérito, comecem a ser julgados, a tendência é de que se tenha um ajuizamento de um número maior de processos porque se entra em um funcionamento de captação de clientes. Os escritórios de advocacia acabam indo atrás das pessoas que foram lesadas e oferecem a possibilidade de ingresso de ação — explica o magistrado.
Há 272 processos contra o poder público para os quais já há sentença. A maioria relacionada a casos de pessoas que buscaram a Justiça para tentar acessar os benefícios emergenciais.
Responsabilidade civil versus força maior
As prefeituras gaúchas ou o Estado têm responsabilidade pelos danos causados pela enchente ou a tragédia gaúcha de 2024 foi um caso de força maior? É este dilema que, juridicamente, está sendo enfrentado por sete juízes e juízas gaúchos que integram o núcleo responsável por julgar os processos contra o poder público sobre a enchente de 2024.
— A gente vai fazer uma análise do conjunto da obra. Com aspectos técnicos, entender se o caso se enquadra no que se chama força maior, que seria um evento da natureza, atípico, de grandes proporções e para o qual não existe a possibilidade de atribuir responsabilidade a alguém, ou se as consequências da enchente, se elas foram decorrentes de alguma omissão do poder público que não mantinha em dia os sistemas de controle da enchente — resume o juiz Mauro Peil Martins, coordenador do grupo de magistrados que trata do tema no TJ.
A juíza-corregedora Andrea Rezende Russo aponta que, nestes casos, é preciso verificar se há um nexo causal entre uma eventual falha do poder público e os danos percebidos pela população.
— Esses processos tratam de responsabilidade civil e é preciso analisar se há um fato, se há uma ação ou uma omissão do poder público. No caso, a maior parte das alegações (nas ações atuais) falam em omissão. Vai ter que se verificar se há nexo causal, se aquela ação ou omissão produziu aquele resultado — explica a juíza-corregedora.
O procurador-geral de Justiça do RS, Alexandre Saltz, acredita que as provas apresentadas ao longo do processo dirão se as falhas nos sistemas de proteção ocorreram em um contexto de colapso generalizado ou por falhas de manutenção.
— Primeiro, tem responsabilidade? Segundo, quem é o responsável? Esse é o início (do debate). A questão é: o município por si só é responsável? Isso a prova é que vai dizer. A rua inundou (por exemplo) porque o sistema falhou. O sistema falhou por que houve um colapso geral? Aí haveria, em tese, a possibilidade de reconhecer uma situação de força maior que exclui a responsabilidade. Ou colapsou porque foi mal projetado, porque não estava sendo bem utilizado? — exemplifica Alexandre Saltz.
Maioria das ações pede indenizações de até R$ 91 mil
Prevendo a judicialização em massa em função dos danos causados pelas águas, o Tribunal de Justiça do RS criou, em outubro de 2024, dois grupos de juízes que, desde então, são responsáveis por analisar todos os processos contra o poder público relativos à enchente.

O primeiro grupo - Núcleo de Justiça 4.0 - Enchentes 2024 - Juizado Especial - fica com os processos de menor valor, que envolvem demandas de até 60 salários mínimos – o que representa atualmente R$ 91.080. Mais de 90% das ações atuais está a cargo deste núcleo. O restante dos pedidos fica sob a responsabilidade do Núcleo de Justiça 4.0 - Enchentes 2024 - Fazenda Pública.
— Foi uma ideia da Corregedoria (do Tribunal de Justiça) para que se houvesse uma tramitação mais ágil, para que os processos todos seguissem um procedimento semelhante — lembrou Peil Martins.
Desde a instauração do Núcleo de Enchentes, em outubro de 2024, todos os processos protocolados no RS sobre o tema são remetidos para os sete juízes destacados para esses julgamentos.