Mais de cem dias após a última enchente, o cenário no Vale do Taquari é de reconstrução. Porém, o ritmo não é uniforme e envolve realidades diferentes. O recomeço acontece de forma lenta e até tímida.
As cidades atingidas pela inundação ainda apresentam vestígios da destruição causada pela cheia do Rio Taquari. Em Cruzeiro do Sul, o bairro Passo de Estrela segue em ruínas.
O mesmo panorama pode ser visto em Arroio do Meio, no bairro Navegantes e no entorno da Casa do Peixe, que ostenta a bandeira do Rio Grande do Sul em uma das janelas como símbolo da resiliência gaúcha frente à tragédia. Entretanto, o casarão centenário de 1907 já está em obras para ser reaberto em 20 de setembro.
— Acho que já dá para ver a situação como uma reconstrução. Aqui era um monte de entulhos — afirma o proprietário da Casa do Peixe, Darcísio Schneider, conhecido como Picolé.
Cruzeiro do Sul foi uma das cidades mais impactadas. Com cerca de 12 mil habitantes, a localidade chegou a ter 50% da população fora de casa. Conforme a prefeitura, 95% do comércio foi atingido. A Secretaria de Assistência Social e Habitação de Cruzeiro do Sul diz que 246 pessoas permanecem acolhidas em três abrigos municipais.
Municípios como Estrela, Lajeado, Muçum e Roca Sales também não se recuperaram de forma plena. Na zona rural de Roca Sales, há propriedades interditadas pela Defesa Civil em função do risco de novos deslizamentos. Onze pessoas morreram e duas permanecem desaparecidas após o deslize de terra de 30 de abril.
— Não temos mais pessoas em abrigos, todos foram fechados — comenta a secretária da Assistência Social e Habitação de Roca Sales, Daiana Ludwig Danieli, em relação à enchente.
O prefeito Marcelo Caumo, de Lajeado, reconhece as dificuldades de 2024. Porém, ao mesmo tempo, assegura que as metas previstas para o setor público serão cumpridas.
— Essa enchente foi um horror e atingiu 16% da cidade. Foi um ano difícil em que todos os municípios precisarão fazer ajustes nos orçamentos. Por outro lado, a saúde financeira de Lajeado dá garantia de que vamos conseguir cumprir as metas do setor público — compartilha.
As enchentes de 2023 e 2024 destruíram completamente 187 casas em Muçum. Em 17 de julho, o último abrigo foi fechado. As famílias foram realocadas para novas residências por meio do Programa Aluguel Social, implementado pelo município em parceria com os governos estadual e federal.
— Recomeçar é um grande desafio, principalmente para uma cidade como Muçum, que enfrentou um temporal de granizo e três inundações devastadoras em um período de pouco mais de oito meses. Mas as decisões difíceis que precisam ser tomadas agora, de realocação de partes da cidade e reconstrução em novas áreas de expansão urbanística, também são fundamentais para garantirmos um futuro próspero e seguro para todos — avalia o prefeito do município, Mateus Trojan.
Em Cruzeiro do Sul, fé e auxílio à comunidade
O bairro Passo de Estrela, em Cruzeiro do Sul, ainda exibe as ruínas da destruição deixada após a inundação do Rio Taquari. Das 850 moradias da localidade, 600 foram derrubadas e muitas desapareceram por completo.
A Igreja Nossa Senhora de Fátima, situada no entorno de onde girava a vida da comunidade, foi abaixo. O sino de bronze foi parar em Estrela e está sendo cuidado por uma família enquanto não se define o lugar para onde será levado.
A imagem da santa, que perdeu as mãos e o nariz ao cair do topo da capela, foi resgatada. A escultura de cerca de três metros de altura foi trasladada para outro ponto do bairro, na Rua 12 de Outubro. A viagem deixou uma visível rachadura no meio da estátua.
Neste município de 13 mil habitantes, a reconstrução passa pelos caminhos da fé. E os planos envolvem a construção de um memorial e também o restauro da santa.
Percebo agora que as pessoas estão assimilando, cada uma no seu tempo, e estão conseguindo projetar o futuro. As pessoas não estão abandonadas, estão sendo cuidadas por alguém
PADRE EZEQUIEL PERIN
Religioso de Cruzeiro do Sul
— Ouvindo os fiéis, pensamos em fazer um memorial onde a imagem voltaria para esse espaço — planeja o padre Ezequiel Perin, 32 anos, dizendo que a ideia depende de autorização da prefeitura.
A reconstrução do bairro passa principalmente pelo auxílio às vítimas. O Vaticano doou 550 mil dólares (cerca de R$ 3 milhões) para a comunidade religiosa de Cruzeiro do Sul e para outras quatro capelas atingidas na região.
A Diocese cedeu o ginásio paroquial para a preparação de alimentos e recolhimento de agasalhos para doação nos abrigos. Todo o dinheiro arrecadado está sendo utilizado para a compra de móveis e itens para as casas de quem perdeu tudo.
Natural da região de Canudos do Vale, o religioso está há dois anos e meio em Cruzeiro do Sul. Ele conta que não acreditou quando foi informado de que a igreja, inaugurada em 11 de novembro de 1954, havia desabado com a cheia. Só teve certeza no momento em que viu com os próprios olhos um vídeo com o desabamento.
— Percebo agora que as pessoas estão assimilando, cada uma no seu tempo, e estão conseguindo projetar o futuro. As pessoas não estão abandonadas, estão sendo cuidadas por alguém — diz o pároco.
Na Igreja Nossa Senhora de Fátima eram realizadas missas uma vez por mês, batizados, comunhões, catequese e até velórios. Agora, só restam ruínas, uma cruz de concreto caída no chão e lembranças. Os fiéis comparecem às missas na Igreja Matriz e em paróquias de outras comunidades próximas.
A reconstrução não será rápida e precisa respeitar o tempo de cada pessoa atingida que não tem mais onde morar. Para esses flagelados, o padre tem uma mensagem:
— Para aqueles que sofrem, quero dizer que esses não estão sozinhos. Nós estamos juntos. É Jesus que diz para os discípulos: "coragem, não tenham medo".
Famílias de Roca Sales vivem em compasso de espera
A reconstrução na Linha Benjamin Constant, na zona rural de Roca Sales, está em compasso de espera. No dia 30 de abril, um deslizamento de terra atingiu a região, que fica escondida entre vales verdes em uma área de geografia verticalizada. Morreram 11 pessoas na região. E duas ainda seguem desaparecidas.
Em razão do deslize de solo, árvores e rochas, algumas propriedades rurais foram interditadas pela Defesa Civil municipal. O motivo para a decisão é por se encontrarem em áreas de risco. E é nessa parte da história que entra o produtor Darcy Funk, 64 anos.
Com as mãos ásperas e cheias de profundos vincos, ele ganha a vida preparando porcos para o abate em sua propriedade de 18 hectares. As terras foram colonizadas pelos seus bisavós, que vieram da Alemanha há mais de um século e subiram o morro abrindo picadas a golpes de facão.
Toda a sua vida, história e lembranças estão conectadas com a lida da terra e dos animais. Agora, em uma zona de risco, ele não sabe o que fazer, nem para onde ir.
— Não podemos abandonar tudo de uma hora para outra. Vamos sair para onde se não temos ajuda? — questiona.
Naquele dia, perto do meio-dia, parte do morro veio abaixo. O deslizamento isolou seu Darcy, a esposa Dulce, 50, e o filho Daniel Mateus Funk, 22.
— Parecia um vulcão — recorda seu Darcy.
Os três viram rochas maiores do que tratores rolando abaixo, em meio a toneladas de terra e a troncos de árvores. Saíram correndo em direção à parte mais baixa, chamada Linha 7 de Setembro, onde buscaram abrigo nos vizinhos. Não tiveram tempo de pegar nada. Escaparam com vida.
A estrada ficou bloqueada por 17 dias. Por três semanas, a família não teve água, luz, telefone ou sinal de internet. Para descer até as zonas mais urbanas, especialmente para buscar diesel para o gerador, foi preciso ir de trator pelo meio da vegetação. E dormir se tornou impossível. Qualquer barulho diferente ou começo de chuva deixava todos tensos.
Na propriedade há um chiqueiro com capacidade para abrigar 1.100 animais, mas nenhum deles se encontra ali. Desde que houve a interdição, a cooperativa recolheu os porcos e parou de os enviar para o colono. O rendimento dele era de R$ 150 mil por ano apenas no trabalho de engorda dos suínos.
Parecia um vulcão
DARCY FUNK
Produtor rural de Roca Sales
Também há 75 animais bovinos, sendo alguns ainda terneiros. As vacas produzem leite e carne. Os colonos ainda contam com galinhas e plantam milho. Dos 20 hectares plantados, três se perderam em função do deslizamento.
Após o morro descer com força, muitos vizinhos abandonaram as terras e não pensam em voltar. Nas Linhas Benjamin Constant e Borges de Medeiros, se escuta o canto de diferentes pássaros. Entre os animais selvagens, a família tem a companhia de gambás, urubus e macacos. Na paisagem, predomina a cor verde.
O filho Daniel chegou a investir em terra perto da casa do pai. Agora também está em compasso de espera. O deslizamento chegou perto da casinha que ajeitava em outra parte do morro.
— A ideia é ficar, não é abandonar tudo o que foi construído. Desde meus 10 anos ajudo o meu pai na propriedade — orgulha-se.
O Morro do Bicudo apresenta diversas rachaduras. Árvores de grande porte que não sucumbiram exibem as raízes para fora do solo. Também se percebe a terra onde se pisa muito fofa e pouco firme em vários pontos.
— Nós precisamos de ajuda do município, do governo e das autoridades. Seguir sozinho não vai dar. Estamos em uma zona de risco — preocupa-se Daniel.
O chefe do setor de Engenharia da Defesa Civil de Roca Sales, Jonas Haefliger, confirma que algumas propriedades permanecem interditadas por tempo indeterminado e diz que laudos sobre os riscos estão sendo elaborados.
— Mostramos para o seu Darcy que a situação onde fica a propriedade dele é bem caótica. Lá há bastante fissuras — revela, enquanto exibe imagens da região comprometida na tela do computador.
Segundo a Defesa Civil, foram identificados 500 pontos de deslizamentos na região. Será solicitado auxílio ao governo estadual para monitorar e orientar os moradores da zona atingida.
— Hoje, não se tem nenhum programa do tamanho dessa complexidade. A propriedade dele está inviabilizada —observa o coordenador da Defesa Civil do município, Silvio Norberto Zart Neto, conhecido como Silvinho.
Para os últimos três moradores daquelas terras da Linha Benjamin Constant, o processo de reconstrução é mais complexo e passa por uma espera ainda sem dia para terminar.
Conselhos do avô e recomeço em nova sede
Com uma economia pujante, a cidade de Lajeado possui empresas robustas e conhecidas em diversos países do mundo. Fundada em 2006, a STW Soluções em Automação produz peças, células robóticas, esteiras, softwares, entre variados itens, utilizados por outras fábricas. Em menos de 10 meses, resistiu a três enchentes.
— Nunca pensamos em desistir. Vamos continuar independente da situação da região. Entendemos que vai levar tempo para reconstruir. Mas isso inevitavelmente vai acontecer, seja pelas pessoas que aqui estão, seja pelo poder público — assegura um dos sócios-fundadores da STW, Junior André Sulzbach, 41 anos.
Teve um período de luto, porque morreram pessoas. Mas logo na sequência foi aquele espírito de retomada. Ninguém solta a mão de ninguém. Chego até arrepiar ao lembrar
EMPRESÁRIO JUNIOR ANDRÉ SULZBACH
Sócio-fundador da STW
Desde o final de setembro do ano passado, os administradores decidiram transferir as principais operações, de forma provisória, para outro ponto, no bairro Campestre. Só permaneceram no endereço antigo de 2,2 mil metros quadrados, a parte administrativa e a base de softwares.
A decisão se mostrou acertada. A última cheia do Rio Taquari destruiu a sede anterior que ficava na Rua Bento Rosa, no bairro Hidráulica. Os prejuízos na soma das duas últimas cheias chegam a quase R$ 8 milhões.
Na terça-feira (6), o empresário acompanhou a reportagem de Zero Hora até o terreno de 8 mil metros quadrados em Estrela, onde será erguida a nova fábrica com pavilhões pré-moldados.
Neste momento, está sendo realizada a terraplanagem no terreno. Trata-se de uma região alta e sem riscos de inundações, junto ao 386 Business Park. O investimento será de R$ 20 milhões e bancado com recursos próprios. A inauguração deve acontecer no primeiro semestre de 2025.
A STW, que conta com 150 funcionários e não demitiu nenhum durante a enchente, tem linha de exportação para países da América Latina, Itália, Alemanha, Rússia, Turquia, Portugal e Coreia do Sul.
Apesar dos imprevistos, a projeção é de encerrar 2024 com 20% de crescimento. A empresa tem ainda uma filial em Toledo, no Paraná, para onde cogitou se transferir depois da cheia mais recente, e um escritório em São Paulo.
Sulzbach, que chegou a ser resgatado de bote junto de outros dois sócios na inundação de setembro, jamais subestimou o poder do Rio Taquari. Ele traz guardado na lembrança conselhos do avô, que foi barqueiro na região e conhecia o fluxo das águas e das inundações.
— Meu avô estava aqui em 1941. E ele sempre me dizia que após uma enchente vinha outra na sequência. E foi o que aconteceu agora.
Para o empresário, a maior lição deixada pela enchente passa pela determinação das pessoas do Vale do Taquari. Trata-se de uma questão de identidade e de pertencimento.
— Teve um período de luto, porque morreram pessoas. Mas logo na sequência foi aquele espírito de retomada. Ninguém solta a mão de ninguém. Chego até arrepiar ao lembrar — conclui.