Nos anos 1930, o poeta holandês Hendrik Marsman descreveu seu país como a terra onde "o som da água, com seus desastres eternos, é temido e ouvido". A frase contradiz o cenário do final de tarde de quinta-feira, 13 de junho, enquanto estamos na parte mais alta do Afsluitdijk, o maior dique do mundo: as águas do normalmente impetuoso Mar do Norte estão calmas, o normalmente ventoso litoral holandês dá lugar a uma brisa e o sol, raro neste final de primavera, se põe no horizonte.
O dique de 32 quilômetros que os holandeses construíram entre 1927 e 1932, foi uma das primeiras grandes obras de engenharia holandesa para domar as águas. A barreira, com duas eclusas nas pontas, criou o lago IJsselmeerem, e subjugou a natureza. Seus construtores, em uma época que não havia computadores, são até hoje tratados como heróis.
O cenário bucólico a 7m25cm sobre o nível do mar, na margem da rodovia A7, que liga o norte da Holanda do Norte e a Frísia, lembra a freeway gaúcha. A história da Holanda é, como diz Marsman no poema, de "desastres eternos". Uma enchente em 1953 matou 1,8 mil pessoas no sul do diminuto país, na região de um delta. A tragédia deu início a um ambicioso plano de construção de novas barreiras e diques. Mas, 40 anos depois, o desastre veio pelos fundos. Em 1993 e, posteriormente, em 1995, a elevação dos grandes rios que cortam a Holanda provocou quatro mortes e 250 mil desabrigados.
— Fechamos a porta da frente, mas não havíamos trancado a porta do jardim — diz o ecologista Hans Brouwer, que trabalhou na Rijkeswaterstaaat, o equivalente holandês à agência ambiental.
De novo, a Holanda aprenderia com os desastres. O país conhecido pelos diques – a própria palavra vem do holandês, dijk –, mudaria a abordagem para lidar com as águas, conforme Taneha Bacchin, arquiteta e pesquisadora gaúcha radicada na Holanda, professora associada do programa Urban Design and Critical Theory, da Universidade de Deltf, perto de Haia. A Holanda que sempre trabalhou contra a água, agora passaria a trabalhar com ela, abrindo espaços para os rios avançarem sobre planícies alagáveis.
— Entendeu-se que não era sustentável continuar elevando os diques, verticalizando, fazendo com que ficassem cada vez mais altos. Esse novo sistema de proteção na Holanda é mais flexível diante das incertezas — explica.
Taneha explica que há três níveis de proteção: os grandes projetos de engenharia, como o Afltdique e o Delta Works, iniciativas como o programa Room for the River, permitindo trechos alagáveis no entorno de cidades, e, dentro das áreas urbanas, conceitos como o de cidades-esponjas, que retêm e promove a absorção local da água assim que ela cai do céu, por meio sistemas de açudes, para que não vá toda para o rio principal.
País exibe robusta governança do sistema hídrico
Nesse processo, há algo pouco visível, que é a governança. A Holanda tem um Ministério da Infraestrutura e Gestão da Água, que investe 7 bilhões de euros por ano em sistemas antienchentes. Há também a figura do "Delta Comissioner", autoridade dedicada à interlocução entre os diferentes níveis políticos - municípios, províncias e governo central.
— É importante ter uma pessoa que coloque todo mundo na mesa. A Holanda é um país de extremos em termos de gestão da água. Se não fizermos isso corretamente, não teríamos um país. Estamos conscientes da urgência desta questão, mas, mesmo assim, temos que ser lembrados da importância de gastar dinheiro — afirma Robert Steijn, engenheiro especialista em gestão hídrica, líder do Dutch Disaster Risk Reduction.
Além disso, uma lei, o Water Act, torna obrigatórios investimentos e atenção às questões relacionadas à água, o que, na opinião de Robert, ajuda a manter o sistema de proteção contra enchentes uma política de Estado – e não de governos.
Gastamos bilhões de euros por ano no nosso sistema de proteção contra inundações. E isso está na lei. Portanto, nenhum partido político pode mudar. Isso está acima desse tipo de debate.
ROBERT STEIJN
Líder do Dutch Disaster Risk Reduction
— Gastamos bilhões de euros por ano no nosso sistema de proteção contra inundações. E isso está na lei. Portanto, nenhum partido político pode mudar. Isso está acima desse tipo de debate. É o único país onde isso funciona. Portanto, não tente copiar isso no Brasil ou em qualquer outro país. Porque para isso é necessário um compromisso político muito forte. Deve estar no DNA da população, na verdade — pontua.
Cerca de 18 milhões de pessoas na Holanda vivem em um espaço muito pequeno, seis vezes menor que o RS e com um terço do território abaixo do nível do mar. Ao mesmo tempo, há uma agricultura muito intensiva.
— Não é simples o gestor da água simplesmente falar: "Olha gente, precisamos cuidar da água". Tem brigas, tem pressão. Mas o governo holandês está cada vez mais comprometido em tomar medidas para dizer que a água vem em primeiro lugar, que você levará em consideração os problemas hídricos e as mudanças climáticas, antes de construir algo, por exemplo — explica Dennis van Peppen, líder do programa internacional da água da Netherlands Enterprise Agency, órgão do Ministério de Assuntos Econômicos e Política Climática.
Mesmo sendo terreno de excelência em lidar com temas hídricos, a Holanda, ele destaca, enfrenta desafios: secas prolongadas, baixa qualidade da água, cobranças da União Europeia por cumprimento de metas de emissão de gases poluentes e a necessidade de construção de reservatórios para os períodos de estiagem. Mesmo depois de séculos de jornada na tentativa de controlar as águas, a Holanda percebeu que o trabalho nunca terá terminado, conforme Hans, que projeta o atual sistema de proteção eficiente até 2050:
— Dizemos que a Holanda nunca estará acabada, haverá sempre um segundo passo.
Ou, como disse Hendrik Marsman nos obscuros anos 30, na Holanda "o som da água, com seus desastres eternos, é temido e ouvido". Mais uma vez.