Desde 2015, a Holanda tem um cargo específico dedicado às questões hídricas e as relações do país com a comunidade internacional. Chama-se Special Envoy for International Water Affairs (Enviado Especial para Assuntos Internacionais da Água). Meike van Ginneken é a segunda a ocupar o cargo, que é uma espécie de diplomata dos recursos hídricos. Ela começou a trabalhar com água em Bangladesh e no Sudão, fazendo trabalhos de saneamento para Médicos Sem Fronteiras. Depois, ingressou no Banco Mundial, onde permaneceu por 17 anos trabalhando em países em desenvolvimento, e na ONU. Ela foi indicada pelo gabinete do primeiro-ministro holandês em 2023 para o posto no país. Ela conversou com ZH.
A senhora acompanhou o que ocorreu no RS?
Não estou familiarizada com a situação tecnicamente com as inundações no sul do Brasil e em Porto Alegre, e no seu Estado, mas, claro, sei como são devastadoras essas enchentes. Vemos cada vez mais os efeitos das mudanças climáticas porque elas estão se manifestando claramente por meio das águas. Agora, as pessoas, o cidadão comum, sente as mudanças climáticas por causa dos alagamentos, porque há muita ou porque há pouca água, ou devido a grandes enchentes, como no Brasil, no Cazaquistão, na Ásia Central e no sul da Alemanha. É doloroso porque é a vida das pessoas, é o sustento das pessoas (que se perdem) e levará muito tempo para reconstrução. Lamentamos pelo Brasil e estamos prontos para ajudar. Sei que uma equipe holandesa do nosso time DRRS (Disaster Risk Reduction) já visitou Porto Alegre para ver como podemos contribuir com nosso conhecimento para garantir que isso não aconteça de novo.
Que lições a Holanda pode compartilhar com o RS?
As mudanças climáticas estão se manifestando por meio da água. Dizer isso, pode parecer que ela é o problema. Mas acho que a é a solução. Precisamos fazer a água o motor da adaptação climática
MEIKE VAN GINNEKEN
Enviada da Água para o Reino dos Países Baixos
As mudanças climáticas estão se manifestando por meio da água. Dizer isso pode parecer que ela é o problema. Mas acho que é a solução. Precisamos fazer ela o motor da adaptação climática. Assim como na Holanda, existem coisas são aplicáveis no Brasil: precisamos boas tecnologias e engenharia. A Holanda tem muita experiência nessa matéria e ficaríamos felizes em compartilhá-la. Mas também sabemos que tecnologia e engenharia não são suficientes. Precisamos ter certeza de que economizamos e garantimos nosso armazenamento de água na natureza. Cerca de 99% do armazenamento está na natureza, não em grandes barragens ou reservatórios, mas em zonas úmidas, aquíferos, lagos e rios. Precisamos desses reservatórios para que, quando há muita água, muita chuva, possamos armazenar para períodos de seca. A terceira coisa que precisamos fazer é tornar a água central no nosso planejamento. Com as alterações climáticas, nem todas as atividades econômicas serão mais possíveis em todos os lugares. Por exemplo, construir novas casas em novos bairros nas planícies inundáveis. Sabemos que as inundações serão mais frequentes e isso pode ser uma política muito ruim. Você precisa levar em conta agora onde construirá casas para as próximas décadas, a partir da noção de que o clima está mudando, em como nossos rios estão mudando.
O programa Room for the River envolveu expropriações de terra na Holanda. Quais foram os desafios?
Passados 45 anos, mudamos a forma como lidamos como a água. Já não lutamos contra a água. Já não lutamos contra a natureza. Vivemos com água. Na verdade, adotamos uma solução baseada na natureza
Sou engenheira, eu estava na universidade nos anos 1990 e aprendi o que fizeram na Holanda nos últimos 800 anos, em como lutamos contra a água, como canalizaram os rios, como construíram diques. Mas, passados 45 anos, mudamos a forma como lidamos com isso. Já não lutamos contra a água. Já não lutamos contra a natureza. Vivemos com ela. Na verdade, adotamos uma solução baseada na natureza. Trabalhamos com a natureza, e o Room for the River é um bom exemplo disso, porque ao tornarmos os rios mais estreitos, com a construção de canais, podem, a curto prazo, reduzir o risco de inundações, mas a médio prazo é preciso dar espaço para os rios. Você precisa ter essas várzeas contra as enchentes e reservatórios para os períodos de seca. Foi realmente uma mudança de mentalidade depois de todos esses séculos e de esses engenheiros que pensaram o que é preciso lutar contra a natureza e combater a água.
Qual a principal dificuldade para a implementar esse projeto?
O principal obstáculo é mudar a mente dos engenheiros e dos profissionais. Mas, também conscientizar o público de que você precisa dessas novas abordagens, de que você não pode combater a água. Você precisa trabalhar com a natureza.
Conte-nos mais sobre o seu trabalho como "enviada para a água". Seria interessante ter esse posto no Brasil ou no RS?
Meu trabalho é conectar o conhecimento da Holanda com outros países. Estou aqui no Tadjiquistão, mas podemos compartilhar com o Brasil, com os Estados Unidos ou com o Senegal, por exemplo. Como a Holanda sabe muito sobre o assunto, queremos tornar esse know-how disponível para outros países a fim de que se alcance os objetivos de desenvolvimento sustentável da ação climática. Mas também queremos aprender com outros países, porque sabemos que, com as alterações climáticas, temos novos desafios e outros países podem já ter inventado a roda. Não queremos reinventar a roda. Acho que esse tipo de cargo bom para fazer o conhecimento sobre a água fluir (entre os países). Poderia ser uma ideia para o Brasil e para Porto Alegre, mas o mais importante a fazer nessas circunstâncias é garantir que o seu governo, o setor privado, a sociedade civil e os institutos de pesquisa trabalhem em cooperação para enfrentar o desafio das enchentes. A Holanda está muito feliz em poder ajudar, em investir nosso conhecimento e trabalhar com vocês para enfrentar esses desafios.
A senhora conhece a realidade brasileira, que é diferente da holandesa em termos de capacidade de investimento?
Viajei algumas vezes para o Brasil. Não posso dizer que conheço a realidade o suficiente. Mas sei que o Brasil tem bons especialistas em água, e se trabalharmos juntos, acreditamos que os pesquisadores locais e nacionais irão nos dizer mais sobre a situação específica no Brasil.