O Café De Zon está localizado no centro de uma ilha em Nijmegen, cidade holandesa próxima à fronteira com a Alemanha. Até 2016, esse naco alongado de terra, ponto de encontro de historiadores, ambientalistas, arquitetos, turistas e ciclistas, era parte do continente. A ilha foi construída artificialmente a partir de um dos mais ambiciosos projetos de engenharia holandesa para minimizar os efeitos da elevação do nível dos rios, o Room for the River (Espaço para o Rio), citado pelo governo do Estado como exemplo de iniciativa aplicável no Rio Grande do Sul. Aliás, a área em torno de Nijmemegen, a mais antiga cidade da Holanda, fundada há mais de 2 mil anos, é muito parecida com o delta do Jacuí e a região das ilhas do Guaíba.
No Café De Zon encontro duas das personalidades que colocaram em prática o Room for the River: Hans Brouwer e Robbert Bruin. Como responsável pelo Rijkeswaterstaaat, o equivalente holandês à agência ambiental, Hans fez do projeto a obra de sua vida. Ele explica que foram 39 iniciativas, entre o deslocamento de diques e a remoção de barreiras para abrir espaço para áreas de alagamento. O mais ousado foi a abertura de novos braços de rios, iniciativa que dá maior vazão aos caudalosos cursos d'água que correm do Leste para o Oeste da Europa, provocando, a cada ano, grandes inundações.
O Rio Waal, um dos braços do Reno, faz uma curva acentuada em Nijmegen e estreita-se nesse ponto, formando um gargalo, que lembra o Rio Taquari, em Muçum, no Estado. Nessa esquina da Holanda, a obra abriu um canal com águas profundas para que o rio tivesse um segundo caminho para fluir em vez de sobrecarregar a cidade. Com a criação do desvio, que gerou a ilha onde está localizado o Café de Zon, cinquenta famílias tiveram de ser realocadas em um processo que demandou anos de negociações. Os antigos proprietários receberam indenizações, não foi um processo fácil, admite Hans: alguns se mudaram para outras áreas da cidade, outros foram embora do país.
— Foram situações muito difíceis e ameaçadoras, em alguns casos a polícia teve de interceder e o presidente da autoridade responsável pela água precisou ser protegido. Agora, olhando para trás, muitas pessoas estão felizes com o Room for the River, sentem-se orgulhosas e esquecem que se opuseram no início — avalia Hans.
Além de abrir uma alternativa ao rio para que suas águas escoem por outro caminho, o projeto permite que novas áreas sejam alagadas e criou um parque fluvial urbano, utilizado para eventos e exposições na nova ilha.
Robbert trabalhou em outro "desvio" do Room for The River, em Veesen Wapenveld, ao norte de Nijmegen, no Rio Issel. Os dois representam gerações diferentes que passaram a olhar a relação com os rios a partir da ameaça representada pelas alterações climáticas, em que diques não suportaram a força da água. No Café de Zon, eles trocam algumas impressões sobre os tempos do projeto que vigorou entre 2012 e 2016, ao custo de 2,3 bilhões de euros.
— Gastamos esse valor, mas, com isso, evitamos muitos problemas. Na Alemanha, no período em que trabalhávamos nesse projeto, houve uma inundação no Rio Elba, que provocou prejuízos de 11 bilhões de euros. Pensamos no que temos de fazer hoje para evitar danos e perdas de vidas no futuro — diz Robbert.
Hans me conduz por um passeio pela ilha artificial. Vamos até o ponto mais estreito, cerca de 15 metros: à direita, está o curso normal do Waal; à esquerda, seu "espelho". No caminho, passamos por um bunker da Segunda Guerra Mundial. Nijmegen foi a primeira cidade holandesa tomada pelos nazistas no caminho até Paris, em 1940. De um lado e outro, avista-se o original do rio e seu irmão-gêmeo, onde há um centro de esportes náuticos e uma arquibancada.
— Cidades como Nijmegen estavam de costas para o rio. Agora, o rio é o centro da cidade. E isso tem muito valor também economicamente — diz Hans.
Próximo ao centro antigo de Nijmegen, percebe-se que o rio está enchendo devido às chuvas dos últimos dias e sofre efeitos das cheias da Alemanha, que inundaram cidades importantes, como Heidelberg. Mas a aproximação do Waal não chega a assustar os comerciantes e clientes de um espaço com restaurantes próximo à costa. Aqui, há espaço para o rio subir, dizem os moradores.
Roterdã, onde a água vem por todos os lados
Darian Mrak e Justin Roosendaal conversam no intervalo das aulas enquanto fumam um baseado (o uso recrativo de maconha é legalizado na Holanda) em meio ao que, diante de um olhar apressado, poderia parecer uma área verde mal cuidada de qualquer cidade brasileira. Aqui em Holfbogen Park, o "mato" é de propósito. A ideia por trás do projeto é "renaturalizar" o local de uma antiga linha férrea sobre um viaduto. A iniciativa teve início em 2019 e será concluída em 2025, quando os dois quilômetros de trilhos serão transformados em um grande parque suspenso de seis metros, no máximo, de largura. Será o mais longo e, ao mesmo tempo, mais estreiro parque da Holanda. Até lá, o "mato" vai (re) tomando conta do lugar: há flores e frutas plantados, mas muito é capim renascido ali.
— Está se tornando um lugar muito bom para encontrar os amigos — comenta Darian.
Eles se encontram no intervalo nas aulas, enquanto a chuva deu um tempo.
— Aqui, a gente aproveita quando o tempo está encoberto. Mas,de repente, começa um temporal — diz Justin.
Costuma-se dizer que, em Roterdã, a água vem por todos os lados – do céu, do mar, dos rios e até de áreas subterrâneas. A "renaturalização" de regiões como a estação de trem contribui para a melhor absorção pelo solo, na linha do conceito de cidades-esponja, desenhadas a partir de estruturas naturais alagáveis para que a água possa ser contida por um tempo e, depois, rapidamente absorvida pelo lençol freático sem invadir as casas.
Roterdã faz jus ao apelido de "cidade dos arquitetos": é um laboratório a céu aberto de experiências de melhor convívio entre cinza do asfalto, o verde da natureza e o azul da água. Descendo-se as escadas do viaduto da velha estação, atrás de um colégio, fica Watersquare Benthemplein. De novo, é preciso apurar o olhar: à primeira vista, parece apenas uma quadra de basquete. Mas, de perto, você percebe que a cancha está alguns metros abaixo do nível do solo, cercada por arquibancadas que fazem as vezes de deraus até o nível inferior. Projetada em 2011 e concluída em 2013, a estrutura é, em situações normais, um espaço de lazer. Quando chove, por meio de vários dutos de aço, a água escorre para dentro do espaço, tornando a estrutura um imenso reservatório para armazenamento temporário da água, evitando o alagamento da área externa.
Essa é uma área vulnerável a enchentes e a períodos de seca, sofrendo com o que os especialistas chamam de "estresse térmico". O bairro lembra o 4º Distrito, em Porto Alegre. Após anos de declínio, empresários locais, profissionais da indústria criativa começaram a se deslocar para a região.
Em outra área da cidade, Dakpark H4H, antiga zona portuária, é possível visualizar três níveis de proteção contra a subida do Rio Waal: na margem do curso d'água, há estruturas de concreto perpendiculares à maré. Elas não barram, mas amortecem a elevação. Em caso de transbordamento, cruzando uma avenida, o rio encontrará uma grande área verde, espécie de jardim, com o mesmo "mato" visto na estação de trem. O trecho serve como "esponja". Se superar esse trecho, a água vai encontrar adiante um dique. Na verdade, trata-se de uma grande estrutura multifuncional. O local funciona como um shopping: tem lojas, estacionamentos e restaurantes. O "telhado" é um imenso parque de coloridas flores, grama verde e pista para caminhada e corrida.