Um ursinho de bronze depositado sobre uma lápide com os nomes de Adrianus Bruinse, 11 anos, e Cornelis B. van Nes, três, no memorial da pacata Oude-Tonge, vilarejo de 5,5 mil habitantes incrustrado no meio do delta do Reno-Mosa-Escalda lembra a maior tragédia das águas que a Holanda já viu. Em 31 de janeiro de 1953, o Mar do Norte, se insuflou sobre a comunidade: 305 pessoas morreram em Oude-Tonge (em toda a região, foram 1.836 vítimas). Os caídos no desastre, entre eles os pequenos Adrianus e Cornelis, estão sepultados no memorial, cujas placas de todas as vítimas estão perfiladas em um bonito jardim. Na entrada do espaço, uma estátua foi construída como símbolo da resistência da brava gente de Oude-Tonge: uma mulher protege o bebê no colo, em movimento de fuga.
É impossível visitar o local, olhar os nomes e as fotografias aéreas em preto e branco da tragédia e não lembrar das cenas de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. Todos os anos, em fevereiro, Oude-Tonge para em memória a sua maior tragédia. Não é incomum a participação do casal real nas cerimônias. A imagem da estátua da mãe com o bebê no colo está em vários locais. No cemitério até o memorial, há painéis informativos sobre o desastre. É ali que encontro Jan Blok, 57 anos, morador do vilarejo, enquanto ele passeia com o cão no final de tarde desta primavera no Hemisfério Norte. Pergunto se, 71 anos depois da tragédia, ele sente-se seguro ali a poucos quilômetros do impetuoso Mar do Norte, de um lado e, de outro, ameaçado pelos rios Reno e Mosa. Jan tira o celular do bolso e abre o Google Maps. Aponta nossa localização e, orgulhoso, identifica a cadeia de diques, represas, comportas, eclusas e barreiras que, desde o desastre, protege não apenas Oude Touge, mas toda a região. É parte do megaprojeto Delta Works (Projeto Delta).
Um dos diques apontado por Jan é a Maeslantkering. Uma das sete maravilhas do mundo da engenharia global, a estrutura móvel, construída entre 1991 e 1997, abre-se e fecha-se automaticamente por meio de um sistema computadorizado chamado BOS. Como Nieuwe Waterweg é a principal via de entrada e saída de navios, os engenheiros não podiam, simplesmente, criar uma barragem no local, o que inviabilizaria o tráfego no mais movimentado porto da Europa. A solução foi construir dois gigantescos braços armados. A primeira vez que ele foi fechado, fora os testes, foi nas tempestades de dezembro de 2023.
— Tudo está seguro agora — garante Jan, para, em seguida, olhar para o céu e completar. — Assim, espero!
Outra moradora de Oude-Tonge, Ini Boender, 74 anos, também se permite o benefício da dúvida.
— Eu me sinto segura, mas, com as mudanças climáticas a gente nunca sabe o que pode vir.
Ela tinha três anos quando a tragédia ocorreu. Lembra das histórias que o pai contava.
— Ele ficou irritado com aquilo tudo. Viu a tempestade chegar, e, dias antes da enchente, foi até o canal. Viu a água subindo e tomando conta das casas. Ele se refugiou na casa de familiares em outra vila mais alta — conta.
Como em nenhuma outra cidade da Holanda, a lembrança da força das águas que rodeiam Oude-Tonge é tão presente. Na praça central, cercada por charmosos cafés, há tótens com fotografias daquele 1953. Todo o trabalho sobre segurança hídrica que o país realiza leva, de certa forma, as lembranças de 1953.
O governo holandês percebeu ali que a gestão dos diques precisava ser abordada de forma drástica. Após a II Guerra, o país, que se rendera no caminho de Hitler até Paris, priorizara a rápida reconstrução, mas não havia melhorado a estrutura das proteções contra a água. Poucas semanas após o desastre, o então Ministério dos Transportes e Gestão da Água criou o chamado Comitê Delta, encomendando uma estratégia para evitar a repetição da tragédia. Ainda em 1953, a comissão presentou o Plano Delta. Como uma fortaleza, a Holanda foi se fechando.
Zandmotor: ideia é que a natureza faça a sua parte
O vento corta o rosto e, com a chuva que começa, a areia cola na pele. A oito quilômetros do centro de Haia, a capital executiva da Holanda, dois mais importantes tribunais internacionais, fica um local que, mesmo 13 anos depois da inauguração, segue sendo considerado um experimento. Com o Zandmotor, em alemão, ou Motor de Areia, em português, os holandeses esculpiram uma península artificial, dragando 21,5 milhões de metros cúbicos de areia do Mar do Norte e depositando-os ao longo de um trecho de dois quilômetros de extensão. A praia, a exemplo do que Balneário Camboriú, em Santa Catarina, fizera em 2021, foi alargada – no caso da Holanda, em níveis exponenciais, 10 anos antes.
O projeto de criou uma espécie de colchão de areia de proteção contra a elevação do nível do mar. Há um lago artificial. A ideia é que a natureza faça a sua parte: trazendo de volta a vegetação e algumas aves marinhas. O projeto reduz impacto de tempestades e das inundações ao longo da costa de Delfland, desde Hook até Scheveningen.