Luciano Sarturi e Diogne Oliveira atravessaram o Arroio Grande a nado, driblando a correnteza para salvar 11 pessoas ilhadas na zona rural de Santa Maria. Lucas Moraes e Marcelo D’ávila passaram dois dias incomunicáveis em uma tapera cercada de água, depois que a lancha na qual tiraram 16 sobreviventes do telhado de casa no interior de Candelária não conseguiu vencer a força do Rio Pardo. Em meio ao labirinto de rios fora de curso e estradas colapsadas, ações de resgate amenizaram o desespero em comunidades isoladas de um Estado fraturado pela natureza.
Após cinco dias de chuva inclemente, o Rio Grande do Sul se viu transformado num imenso banhado. A enxurrada barrenta cindiu cidades, rompeu estradas e segregou famílias, matando 39 pessoas e deixando outras 74 desaparecidas. Quem supôs que não testemunharia cenas de destruição mais chocantes do que nas enchentes de 2023 deparou com um cenário ainda mais desolador desde a última segunda-feira.
À fúria dos rios somou-se o aluvião de barragens transbordantes, dissolvendo pontes de concreto e escalavrando montanhas. Desmoronamentos em cadeia consumiram casas, carros e tudo mais que estivesse pelo caminho. Em um Estado que esparramou suas cidades sempre próximo de um curso d’água, 265 dos 497 municípios foram afetados, disseminando insegurança num contingente de cerca de 8 milhões de pessoas — 74% da população gaúcha.
Em Candelária, no Vale do Rio Pardo, o bombeiro militar Lucas Moraes acordou com a cidade embaixo d'água na manhã de terça-feira (30). Sem conseguir se deslocar até o quartel onde senta praça, em Santa Cruz do Sul, uniu forças aos bombeiros voluntários do próprio município. Ele preparava uma lancha para resgate quando recebeu um pedido para ajudar 16 pessoas ilhadas na localidade de Rebentona, a 12 quilômetros do Centro.
Ao lado do empresário Marcelo D’Ávila e de um morador da região, ele desceu o Rio Pardo desviando de animais mortos, troncos de árvores, galhos e entulhos. Por duas vezes, teve de mergulhar para livrar o motor trancado em cercas de arame cobertas pela inundação. Após meia hora de navegação, enxergaram as vítimas gritando por socorro no telhado de quatro propriedades vizinhas.
Sem conseguir vencer a correnteza rio acima e com apenas uma lanterna de capacete para enfrentar a noite que se aproximava, o trio fez duas viagens até o único terreno seco nas redondezas. Lá, conseguiu abrigo numa tapera habitada por um ermitão, Ducha Goulart, de 78 anos.
Com celulares descarregados e sem luz, o grupo formado por 14 homens, três mulheres e três crianças passou dois dias incomunicável. Enquanto em Candelária amigos e familiares temiam pelo pior, eles mataram galinhas para comer com arroz num preparo sem óleo em fogão à lenha. Na quarta-feira (1), um helicóptero da Força Aérea Brasileira (FAB) sobrevoou o local, mas pairou três quilômetros rio abaixo, onde salvou outras famílias.
Tudo que queria era ver de novo meu filho João, de quatro anos. Fiquei feliz de poder resgatar as pessoas e voltar para casa em segurança.
LUCAS MORAES
Bombeiro militar
No dia seguinte, policiais civis desembarcaram de outro helicóptero, mas estavam atrás de uma mulher grávida em trabalho de parto ali perto. Angustiado e vendo o nível do Rio Pardo assomar à entrada do galpão, Lucas desceu de lancha até uma propriedade próxima, onde carregou o celular o suficiente para mandar a localização ao comando dos bombeiros. Na quinta (2) à tarde, finalmente uma aeronave da FAB retornou, resgatando 19 pessoas. Resignado com a situação, Ducha Goulart recusou-se a deixar a tapera.
— Tudo que queria era ver de novo meu filho João, de quatro anos. Fiquei feliz de poder resgatar as pessoas e voltar para casa em segurança — desabafa Lucas.
A impossibilidade de locomoção em Candelária, de onde não se consegue sair para Santa Cruz do Sul, a leste, Sobradinho, a oeste, e Cachoeira do Sul, ao sul, se repete em todo o Estado. As barreiras impostas pela força do clima mantinham 147 trechos de rodovias estaduais e federais totalmente bloqueados e outros 40 parcialmente interrompidos até o meio da tarde de sexta-feira (3). Estradas se transformaram em leito de rio ou foram seccionadas pelo turbilhão de água como se fossem feitas de areia, não de asfalto. Por conta disso, algumas das cidades mais populosas como Porto Alegre, Santa Maria e Caxias do Sul perderam vias de acesso fundamentais e ficaram intransitáveis entre si.
Artérias responsáveis por conectar grandes centros urbanos foram fatiadas por quedas de barreira, alagamentos ou tiveram pedaços inteiros destroçados. Principal ligação entre o norte e o sul do Estado, a BR-116 registrava 14 bloqueios totais e quatro parciais entre Esteio, na Região Metropolitana, e Campestre da Serra. Entre a Capital e São Gabriel, a BR-290 apresentava nove pontos com algum tipo de dano, o que chegou a impedir o acesso a municípios como Cachoeirinha. Entre as vias estaduais, a RS-287 foi uma das mais afetadas.
Além de isolar localidades e comprometer o abastecimento de regiões inteiras, o colapso viário exigiu ações de socorro a moradores convertidos em ilhéus ao mesmo tempo em que dificultou a chegada de forças de auxílio.
— Temos colegas que não conseguem chegar ao local de trabalho, por isso temos de remanejar constantemente gente entre os diferentes postos. Equipes da Polícia Rodoviária Federal (PRF), assim como de outros órgãos de segurança, também não conseguem chegar ao destino, o que prejudica os resgates. Até as rotas alternativas estão inviáveis. Mas seguimos tentando intensificar as nossas ações com o que temos — afirmou o chefe da 4ª Delegacia da PRF, com base em Lajeado, Marcos César Silva.
Em Santa Maria, na região Central, as dificuldades logísticas e de contingente encontraram reforço num grupo de especialistas em esportes de aventura que atua como bombeiros voluntários. Na quarta-feira, Luciano Sarturi, Diogne Oliveira e Givago Ribeiro atuavam no resgate de um idoso que estava há três dias isolado e imóvel sobre uma cama na localidade da Estrada do Perau. Eles retornavam para a cidade quando foram comunicados que havia 11 pessoas de uma família ilhadas na Linha 7, distrito da Palma, na divisa de Santa Maria com Silveira Martins. O socorro era urgente, mas havia um empecilho: a queda da ponte da Figueira, na RS-287.
Canoísta profissional premiado com duas medalhas de bronze em jogos pan-americanos, Ribeiro está acostumado a remar com os amigos pelas corredeiras dos principais rios do RS. Mas o desafio de cruzar o Arroio Grande em meio a uma cheia de proporção inédita demandava preparo especial. Na manhã seguinte, ele ficou coordenando a retaguarda enquanto Oliveira e Sarturi enfrentaram no braço a correnteza.
Primeiro, aproveitaram a corrente a favor até uma ilha no meio do arroio. Dali, nadaram contra o fluxo até a outra margem, totalizando 200 metros de braçadas. No asfalto, pegaram carona com uma ambulância até outro bloqueio, de onde ingressaram na mata abrindo trilha a facão.
Após encontrarem os desgarrados, guiaram o grupo à ambulância. Na beira da ponte estropiada, Ribeiro os aguardava com um barco para fazer a travessia de volta a Santa Maria.
— Estamos habituados a fazer rapel, escalada, rafting. Descemos o Rio das Antas, os 300 quilômetros do Taquari e depois o Jacuí até chegar ao Guaíba, mas nunca enfrentamos nada igual. Foi um resgate que durou 10 horas. Só quando acabou ficamos pensando em tudo que fizemos — relata Ribeiro.
Nos salvamentos Rio Grande afora, as forças de segurança encaram desafios distintos para atender os necessitados. As condições meteorológicas adversas para deslocamentos aéreos e a dificuldade de comunicação são agravantes num panorama já assustador. O cenário se tornou tão caótico após o transbordamento de rios e arroios que centrais de comando nem mesmo conseguiam entrar em contato com as equipes enviadas a campo para planejar adequadamente as ações. Na sede do 6º Batalhão de Bombeiro Militar, em Santa Cruz do Sul, o tenente-coronel Daniel Dalmaso Coelho mostrava-se angustiado no começo da tarde de sexta-feira (3).
— Mandei cinco equipes para reforçar o atendimento no Vale do Taquari, eles operaram durante a madrugada, mas não sei onde estão agora. Não consigo ter informações do pessoal que está no terreno por conta dos problemas de internet e telefonia — lamentou Dalmaso, que também coordena ações no Vale do Rio Pardo.
Sem contato com quem está no front, o serviço de planejamento para atender a um maior número de pessoas ilhadas fica ainda mais difícil. Dalmaso afirma que, mesmo quando se consegue trocar informações, as condições operacionais muitas vezes limitam a capacidade de resposta.
Faltam aeronaves para a grande demanda. Quando temos aeronave, às vezes faltam condições de voo.
DANIEL DALMASO COELHO
Tenente-coronel dos bombeiros
— Faltam aeronaves para a grande demanda. Quando temos aeronave, às vezes faltam condições de voo — afirma o comandante.
Com pontes ruindo e estradas desmanchadas, milhares de gaúchos começaram a correr aos mercados e postos de gasolina para montar estoques preventivos ou encher o tanque do automóvel. Em Caxias do Sul, a noite de quinta-feira (2) registrou filas intermináveis de consumidores e motoristas apavorados com a possibilidade de o isolamento geográfico deixar a cidade sem água mineral, comida ou gasolina.
Na sexta, em razão da demanda maciça o combustível começou a escassear nas mangueiras. Segundo estimativa do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo da Serra Gaúcha (Sindipetro-Serra Gaúcha), no meio da tarde já havia falta de gasolina em cerca de 80% dos pontos de venda dos 49 municípios da região, com risco de o volume remanescente se esgotar até o final do dia.
— Em Caxias, todos os acessos por rodovia estão com bloqueio. As carretas de combustível estão retidas ali por Maquiné, Terra de Areia, porque não tem como chegar. O cenário é o mesmo nas outras cidades da Serra. Não temos informação de quando vai normalizar — afirmou o presidente da entidade, Vilson Luiz Pioner.
A preocupação do sindicato era evitar que motoristas enchessem o tanque sem necessidade, comprometendo a circulação de veículos como ambulâncias e viaturas policiais, da Defesa Civil e de bombeiros. Os apelos por moderação não surtiram efeito em várias partes do Estado, incluindo a Capital, onde também foi registrado aumento da demanda.
Já nos supermercados, os produtos mais disputados nas gôndolas foram água mineral, papel higiênico e alimentos. O presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Gêneros Alimentícios de Caxias do Sul (Sindigêneros), Volnei Basso, afirma que apesar das compras motivadas por pânico terem reduzido os estoques, não havia temor de desabastecimento generalizado.
Pedimos encarecidamente às pessoas que tenham calma, as lojas têm estoque suficiente para dar conta da necessidade até que as primeiras estradas voltem a ser desbloqueadas.
VOLNEI BASSO
Presidente do Sindigêneros
— Pedimos encarecidamente às pessoas que tenham calma, as lojas têm estoque suficiente para dar conta da necessidade até que as primeiras estradas voltem a ser desbloqueadas — argumentou Basso.
O drama do isolamento provocado pelo dilúvio que se abateu sobre o Rio Grande do Sul é mais significativo em locais que enfrentam uma enchente pela terceira vez em oito meses. Em Muçum, no Vale do Taquari, equipes de apoio lutavam para abrir uma rota de saída para o município. Todas as vias que conectavam a cidade a outros pontos foram bloqueadas ou danificadas pela chuvarada. A esperança do prefeito, Mateus Trojan, era conseguir liberar pelo menos um caminho para fora do cerco de água e lama erguido ao longo da semana.
— Nossa dificuldade estrutural é extrema porque temos, além de nova inundação, rodovias rompidas e estradas de acesso ao interior com muitos deslizamentos, o que nos deixa ilhados. Estamos trabalhando na desobstrução de uma estrada para ter acesso pelo menos a Vespasiano Corrêa e à região alta desses municípios da Serra, para conseguir trazer suprimentos, água, pessoas e maquinário — contou Trojan na tarde de sexta, enquanto os trabalhos para tentar religar Muçum ao restante do Estado prosseguiam.