Da mesma forma que milhares de crianças por todo o Rio Grande do Sul, a pequena Reinalez, cinco anos, já preparou sua lista de presentes a ser encaminhada ao Papai Noel. Na cartinha escrita com letra de fôrma em papel azulado, a menina pede uma boneca, um carrinho de bebê e um slime — espécie de geleia pegajosa. O final do texto revela uma diferença significativa em relação à maioria dos outros meninos e meninas de sua idade, ao informar onde o bom velhinho deverá encontrá-la para entregar as encomendas: "Querido Papai, estou no abrigo".
Filha de uma venezuelana que emigrou em 2016, Reinalez é uma das 362 pessoas afetadas pela enchente de maio que ocupam o Centro Humanitário de Acolhimento (CHA) Vida, na zona norte de Porto Alegre. É um dos maiores alojamentos públicos espalhados pelo RS. Em todo o Estado, ainda vivem 1,2 mil pessoas deslocadas pela inundação e que deverão passar a noite de Natal, mais de sete meses depois da cheia, em acomodações provisórias.
Nos centros de acolhimento montados pelo governo estadual e geridos pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), há uma força-tarefa empenhada em amenizar o sofrimento de quem chega ao final do ano com a esperança estremecida pelo infortúnio.
Nas duas unidades localizadas na Capital e em Canoas (onde um terceiro local está sendo desmobilizado), a noite de 24 de dezembro contará com distribuição de presentes às crianças pelo Papai Noel. Os locais receberam decoração especial com árvore, guirlandas e festões natalinos, além de trabalhos artísticos feitos pelos filhos dos desabrigados.
— Vamos oferecer uma refeição especial, mas as pessoas ainda estão decidindo se preferem uma ceia na véspera ou um almoço no dia do Natal — afirma o coordenador de operações da OIM no centro, Eugênio Guimarães, que vai acumular funções e assumirá o posto de Noel durante a celebração.
O endereço preciso de Reinalez, sua mãe, Maria Eugenia Belisario, 34 anos, e outros três irmãos de 14, 15 e 18 anos é dormitório G-70, localizado na ala familiar do abrigo montado em uma estrutura de metal e lonas brancas ao lado do Centro Vida. Nas celebrações do ano passado, a família vivia situação oposta. Com o salário como funcionária do setor de limpeza, havia conseguido reformar o imóvel de quatro quartos: instalara janelas e piso novos, uma cozinha planejada, e ajeitara o banheiro. Poucos meses depois, a água chegou ao telhado da moradia localizada na ocupação Farroupilha, que reúne dezenas de migrantes venezuelanos na vila Asa Branca, bairro Sarandi.
— Perdi tudo. Desde então, tomo medicação para enfrentar as crises de ansiedade. O Natal passado, com a casa reformada, foi muito especial. Esse de agora, apesar do esforço de todos que trabalham aqui no abrigo, não tem como não ser triste pra mim — diz Maria Eugenia.
Para aliviar queixas de calor excessivo sob a lona, em um espaço que não conta com janelas, a administração do local instalou recentemente 26 ventiladores e 25 climatizadores, além de ar-condicionado em locais específicos, como a sala multiuso. Exaustores recém-colocados nas paredes trocam o ar interno a cada duas horas. Apesar do alívio, os ocupantes do alojamento — cujo contrato com o governo gaúcho foi renovado até junho do ano que vem — só conseguirão respirar aliviados quando receberem o presente de Natal mais desejado: uma nova moradia.
"Preciso dar de volta a vida do meu filho"
Quando a água do Guaíba avançou sobre a Ilha da Pintada, em Porto Alegre, Luciana Pereira, 42 anos, o marido, Elizeu, e o filho Gabriel, 10, começavam a aproveitar um novo padrão de vida. Havia apenas três meses, tinham aberto uma loja de bicicletas. Uma pequena folga no orçamento permitira darem a Gabriel um quarto próprio bem-decorado, com TV e um videogame. A torrente levou tudo de arrasto — os móveis, a TV, o console, a casa, a loja.
Elizeu já conseguiu voltar a trabalhar, como empregado, montando bicicletas, mas Luciana descobriu um tumor no fígado que será melhor avaliado em exames marcados para o mês de março. Apesar de ter de enfrentar as complicações de saúde, a prioridade dela é outra.
— Preciso dar de volta a vida do meu filho — murmura, com os olhos marejados.
Enquanto a família aguarda na fila do programa federal de compra assistida de um novo imóvel, ainda sem prazo para se concretizar, o trauma deixado pela inundação se manifesta de formas surpreendentes. Luciana conta que, durante um passeio com outros moradores do abrigo do Centro Vida, entrou em desespero quando avistou as proximidades da orla do Gasômetro:
— Foi por ali que chegamos, de barco, depois de fugir da ilha já com a água pela cintura.
"No Natal, o que todos gostariam é de uma casa"
Ex-moradora da Ilha Grande dos Marinheiros, Elisabete Pinheiro de Lima, 53, afirma que todos os mais de 360 ocupantes do Centro de Acolhimento Humanitário Vida, na Capital, sonham com um mesmo presente de Natal: uma casa nova. Como sabe que não há tempo hábil para o desejo se transformar em realidade, ela prefere dizer o que não quer de jeito nenhum: voltar a ter animais de estimação, embora exista um espaço pet para receber os bichos de quem está abrigado no Centro Vida.
Desde que a enchente engoliu a ilha onde vivia, jamais voltou a ter notícia dos dois cães de estimação, Bob e Chaiane, nem dos quatro gatos com quem dividia a casa arrasada.
— Não sei se a água levou, se foram levados para algum lugar... já procurei em tudo que foi abrigo, e ninguém sabe deles. Depois disso, nunca mais quero ter outro bicho — lamenta a antiga tutora.
O marido faleceu poucos meses antes do início do período de enchentes, que primeiro atingiu Elisabete em seu endereço anterior, em Eldorado do Sul. Depois da segunda cheia no município, decidiu se mudar para a ilha da Capital a fim de trabalhar com reciclagem de materiais. Pela terceira vez em oito meses, perdeu o que tinha dentro de casa — e, desta vez, a própria moradia.
— Tinha comprado tudo de novo, móveis, fogão, geladeira, e perdi tudo mais uma vez. Agora espero ser chamada para o programa da Caixa (que garante recursos para imóveis de até R$ 200 mil) para comprar uma casa nova — conta a recicladora.
O alívio de quem vai passar as festas na casa nova
Se muitos gaúchos que perderam suas casas para a enchente de maio terão de passar o Natal em alojamentos, parte dos antigos desabrigados vai esperar pela visita do Papai Noel já em novas casas. Em um imóvel localizado nos fundos do bairro Mato Grande, em Canoas, a família da dona de casa Franciele Oliveira dos Santos, 29, fixou um boneco do velhinho barbudo na porta da moradia de madeira que substitui uma anterior, destruída pela cheia.
— A única coisa que a gente conseguiu salvar foi uma cama com colchão. O resto se perdeu — conta Franciele.
A moradora de Canoas, mãe de cinco filhos com idades entre um e 11 anos, permaneceu durante dois meses vivendo em um abrigo montado em uma escola do bairro Estância Velha. Ela e o marido, William, se espremiam em um colchão de solteiro enquanto três filhos dividiam outro, e os dois filhos restantes ocupavam colchonetes.
— Tudo era muito difícil... dormir, conviver com um monte de gente em um espaço todo aberto — relembra.
Franciele e duas dezenas de outras famílias da mesma rua foram beneficiadas por um projeto voluntário tocado pelas ONGs SOS Vidas e Comboio do Bem em parceria com Fazenda Santa Úrsula, Rotary e Redemac. O grupo doou material de construção e móveis para permitir que os atingidos voltassem para casa. Franciele nem mesmo conseguiu esperar a cheia baixar completamente.
Quando a água ficou na altura da canela, já voltamos para casa. Esse foi o maior presente que poderíamos ter recebido esse ano
FRANCIELE DOS SANTOS
Dona de casa
Para o Natal, a família não chegou a fazer grandes planos. O maior objetivo, que era ter um lar onde pudessem passar juntos a noite, já foi alcançado. O cardápio será uma carne assada e não muito mais do que isso.
— Só o necessário — diz a dona de casa.
As crianças deverão ser presenteadas com duas bicicletas, também a serem entregues pelos voluntários que conseguiram reconstruir a casa despedaçada pela enchente.
A poucas quadras dali, a idosa Oraci Fernandes, 81, poderá realizar na noite do dia 24 de dezembro um sonho cultivado ao longo dos dois meses em que também permaneceu alojada em um abrigo municipal: passar as festas de final de ano ao lado do filho, Romering Castro, 42, e do neto, Arthur, cinco.
Mais conhecida pelo apelido de Josefa, foi contemplada com uma reforma completa da moradia, que apresentava brechas nas paredes enquanto o piso cedia sob o próprio peso. A ação foi possibilitada pelo mesmo projeto voluntário, que também mobiliou e garantiu eletrodomésticos para a residência.
— Nos primeiros dias depois da cheia, quando fiquei em uma escola, cheguei a dormir no chão. É um grande presente de Natal poder estar em casa novamente — conta Josefa.
Várias das moradias reformadas, por se encontrarem em área de alto risco, terão de ser desocupadas futuramente. Mas, até que isso ocorra, os sobreviventes da pior inundação já vista no Estado não ficarão sem um teto.
Entrega de novas moradias tem ritmo lento
Procurada por Zero Hora, a Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, órgão federal responsável por ações de recuperação no Estado, não se manifestou sobre os prazos para que desabrigados da enchente recebam novas moradias e deixem os abrigos públicos. Até agora, 3.956 famílias foram habilitadas a receber casas pelo programa de compra assistida viabilizado por meio da Caixa Econômica Federal. Deste contingente, 21,5% (853) estão com seus processos em tramitação na Caixa.
O programa prevê a compra de imóveis por parte do governo federal para pessoas das faixas 1 e 2 do Minha Casa, Minha Vida com renda de até R$ 4 mil. Os imóveis que serão custeados pela União têm valor de até R$ 200 mil. Quando aprovadas, as famílias podem escolher qualquer residência nesta faixa. Ao ser feita a definição, a Caixa Econômica Federal faz a compra.
O titular da secretaria, Maneco Hassen, argumentou que o percentual de pessoas com processos em tramitação "é importante para um programa que foi criado especificamente para a enchente, uma adaptação necessária no governo e na Caixa, e que agora começa a entregar os frutos. A gente espera até o final do ano chegar próximo de mil imóveis em contratação para, em 2025, (ir) com força total nesse tema".