A máxima “o povo pelo povo” ganhou novos significados para os gaúchos depois que as inundações de 2024 exigiram uma cooperação sem precedentes para o enfrentamento da crise deixada por elas. Sem que o poder público conseguisse dar conta de todo o suporte, dada a proporção dos estragos, a atuação da iniciativa privada teve papel fundamental para respostas imediatas e soluções de longo prazo.
No embalo da corrente de solidariedade, empresas de inúmeros segmentos se uniram para prestar amparo a funcionários atingidos, comunidades afetadas, ou mesmo para a reconstrução de estruturas permanentes e de uso comum, como pontes e estradas. No individual ou no coletivo, o recurso oriundo dos CNPJs deu celeridade para que obras ou ações pudessem ser encaminhadas tão logo a água permitisse.
A criação de fundos milionários a partir de doações de grandes companhias foi um dos exemplos que marcou a atuação da iniciativa privada. A modalidade de captação de recursos, comum em outras situações financeiras, ganhou ainda mais visibilidade durante o momento mais crítico da crise climática no Estado.
Liderado pelo empresário William Ling, presidente do Instituto Ling, e viabilizado com apoio das próprias prefeituras e da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), o Reconstrói RS é uma das principais iniciativas criadas nesta linha. Com R$ 85 milhões em recursos — R$ 50 deles levantados somente pela família Ling —, o programa já aprovou 17 projetos e empenhou quase R$ 20 milhões, somando outras três iniciativas ainda em vias de aprovação.
Os empreendimentos, previamente elencados pelos municípios como obras prioritárias e depois aprovadas pela estrutura técnica que administra o fundo, incluem construção de pontes e outras intervenções de infraestrutura nos locais afetados pela cheia. O foco é reconstruir estruturas que consigam atender o maior número de pessoas, como as que permitam fazer ligações entre cidades e escoar a produção.
A inspiração para o modelo veio de Nova Roma do Sul, município que reconstruiu uma ponte destruída pelas águas em tempo recorde no ano passado. A mobilização da comunidade arrecadou R$ 9 milhões para a construção da nova travessia. Da mesma forma que o Reconstrói RS, outros fundos liderados por grandes companhias e empresários, como RegeneraRS, Movimento Próximos Passos, Gerando Falcões e Gerdau e Instituto Cultural Floresta (IFC) vêm viabilizando uma série de projetos.
— É uma matemática que viemos aprendendo ao longo dos anos, baseada em exemplos como o de Nova Roma do Sul, onde se conseguiu fazer uma ponte mais rápida, mais barata e, efetivamente, mais resistente e resiliente. Esse é o exemplo que temos de seguir, juntando a ideia do privado e do associativismo para que as coisas aconteçam mais rápido — diz Douglas Ciechowicz, vice-presidente de micro e pequenas empresas da Federasul.
Com um dos pilares fincados na reconstrução de infraestruturas rodoviárias, a Randoncorp foi uma das gaúchas que destinou recursos para a retomada do Estado. A empresa também incluiu ações de cunho social e de suporte ao empreendedorismo.
— Em algum momento tivemos algo como 90% das estradas do Estado com bloqueios múltiplos, queda de terra, destruição da base da estrada, pontes que desapareceram, então optamos por trabalhar com a reconstrução desses pontos — explica o CEO da Randoncorp, Sérgio Carvalho.
Por meio de financiamentos ou assumindo a coordenação de projetos, a empresa assumiu a reconstrução de 11 pontes em regiões da Serra e do Vale do Taquari, duas regiões fortemente afetadas pela enchente.
Em Santa Tereza, na Serra, onde a participação foi maior com o fornecimento de toda a estrutura metálica, a ponte de 30 metros deve estar pronta no ano que vem. Outras 10 travessias menores, erguidas com parceria de entidades e doação de material de outras empresas, devem ser todas concluídas até a primeira metade de 2025.
O CEO menciona a importância de se recorrer à expertise da indústria em geral para atuar em momentos de decisões rápidas e assertivas, como nos episódios de maio:
— Sabemos que, em um primeiro momento, há um nível de paralisação e de choque muito grande vindo da catástrofe em si. Mas é um momento de mostrar a liderança. A participação da indústria, de forma direta ou no sentido de orientação, de criação de grupos de trabalho, tem formas muito semelhantes àquilo que fazemos no nosso dia a dia. Então, temos muito o que contribuir, não apenas pelo lado financeiro, mas também no processo de priorização, de desenvolvimento de soluções, análises e prioridades para o Estado.
Legado em resgate
No campo imaterial, foram muitas as memórias e tradições levadas pela força da água, destruindo locais simbólicos para a manutenção da cultura gaúcha. Expandindo os esforços de reconstrução para além das infraestruturas físicas, a Corsan Aegea desenvolveu projetos que revitalizassem essas áreas.
A operação, viabilizada em parceria com prefeituras, envolveu o uso de maquinários pesados, além de 60 profissionais que atuaram diretamente nas cidades mais afetadas.
Samanta Takimi, diretora-presidente da Corsan, recorda que as ações incluíram a limpeza de vias públicas, desobstrução de redes de drenagem e remoção de entulhos. Nos locais simbólicos, como o CTG Porteira da Tradição e a Biblioteca Pública de Eldorado do Sul, a empresa se concentrou no resgate da identidade cultural, oferecendo maquinários e equipes para revitalizar esses espaços.
— Resgatar a identidade é essencial para a reconstrução emocional e cultural das comunidades. Espaços como CTGs e bibliotecas são muito mais do que estruturas físicas. Eles simbolizam as tradições, os valores e a força do povo gaúcho. Revitalizá-los reforça o sentimento de pertencimento e oferece um ponto de partida para a reconstrução da alma coletiva após uma tragédia — destacou Samanta.