Há no Rio Grande do Sul um refúgio natural que abriga 99 tipos de peixe, 44 variações de répteis e pelo menos três dezenas de espécies de mamíferos em meio a um emaranhado de rios e canais, juncos e aguapés. Poderia ser mais um entre tantos oásis verdejantes em solo gaúcho, mas um detalhe o diferencia de qualquer outro ambiente: está a menos de um quilômetro do principal centro urbano do Estado.
A maior parte do Delta do Jacuí, junto ao coração de Porto Alegre, foi transformada em parque estadual há quase meio século, mas jamais viu se concretizarem ideias previstas no primeiro plano elaborado para a região, que incluía ações de preservação, educação e lazer. A intenção do Piratini de conceder porções do delta à iniciativa privada poderia colocar em prática algumas das intenções apresentadas pela primeira vez ainda no final dos anos 1970, como a abertura da zona de preservação à visitação turística e cultural, mas enfrenta a desconfiança de ambientalistas pelo risco de dano a uma área que ameniza enchentes e estiagens, garante a potabilidade da água consumida na metrópole e preserva a existência de inúmeras espécies animais e vegetais.
Responsável pelo repasse a possíveis investidores, a Secretaria de Parcerias e Concessões do Estado se recusou a prestar declarações sobre o futuro do delta sob o argumento de que já havia se manifestado anteriormente a respeito do projeto, ainda em fase inicial de estudos, e não teria novidades a acrescentar. A pasta manteve a mesma decisão mesmo quando questionada sobre o fato de que não havia comentado a contrariedade de entidades ambientais em relação à iniciativa. A Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), que responde pela gestão da zona de proteção, mas não pelo modelo ou pelo encaminhamento da concessão, sustenta que a política de parcerias com o setor privado já colocada em prática em outros parques gaúchos, como o do Turvo, do Tainhas e do Caracol, promove a educação ambiental da população e garante renda para viabilizar melhores condições de preservação.
Moldado ao longo de milhares de anos pela deposição de sedimentos trazidos pelos rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí, o parque tem 14,2 mil hectares – o equivalente a quase 20 mil campos de futebol – que se espraiam por seis municípios: Porto Alegre, Canoas, Nova Santa Rita, Triunfo, Charqueadas e Eldorado do Sul. Uma de suas principais características é atuar como uma espécie de “esponja” das águas que escoam para lá.
– Cerca de 70% das águas do Estado acabam vindo para essa região. As ilhas funcionam como esponjas que absorvem parte desse volume. Sem elas, a Capital sofreria inundações muito piores do que as que vem sofrendo – sustenta o chefe-substituto da Divisão de Unidades de Conservação da Sema, João Manoel da Silva.
Nos períodos de seca, o efeito é o contrário: a umidade das áreas alagadiças e de banhado atenua o impacto da falta de chuvas. O arquipélago também é abrigo para espécies vegetais como corticeira-do-banhado, ingás, figueiras e maricás, e animais que incluem lontras, cágados, capivaras, ratões-do-banhado e jacarés-do-papo-amarelo.
– Muitos desses animais eram mais abundantes, mas vêm diminuindo sua populações por conta de problemas como a caça ilegal – observa a gestora do parque do Delta, Gabriela da Cunha Souza.
Por conta da importância e da fragilidade desse ambiente, caracterizado como uma zona de transição entre o Pampa e a Mata Atlântica, entidades ambientalistas criticam a ideia de transferi-lo à iniciativa privada.
– É um absurdo ceder um parque desses. Só o ecoturismo não consegue manter (a concessão). No Brasil inteiro, o ecoturismo não mantém. Então precisa de outras atividades, e aí surgem as ideias de implantar restaurante, esse tipo de coisa. Não somos contra o lucro, mas então que comprem um terreno privado e invistam, em vez de fazer isso em área pública – sustenta o integrante da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) Francisco Milanez.
Membro do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá) e do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), Paulo Brack também se diz preocupado:
– As concessões que estão sendo feitas têm modelagem precária, sem gabarito técnico. Temos uma forte crítica a esses modelos de concessão. Queremos que a área técnica da Sema acompanhe isso, para que não haja permissão de construções que descaracterizem a área. Não queremos que setores econômicos tomem para si a definição de como será o futuro do parque.
O esboço de projeto elaborado para o Estado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) sugere a implantação de spa, bistrô, museus interativos e espaço para eventos. Conforme a Secretaria de Parcerias, o desenho final da proposta pode mudar e só deve ser apresentado depois que outra concessão – a do Cais Mauá – avançar. A ideia é que a renovação do cais gere maior demanda pela visitação às ilhas. A proporção da área a ser repassada aos investidores também pode mudar. Pela proposta do BNDES, poderia chegar a pouco mais de um terço do parque, mas outra possibilidade seria concentrá-la ao entorno das edificações já existentes – o que envolve principalmente construções históricas localizadas na chamada Ilha da Casa da Pólvora, localizada defronte ao Cais Mauá, com vista desde o Centro Histórico de Porto Alegre.
A titular da Sema, Marjorie Kauffmann, afirma que o temor dos ambientalistas não se sustenta:
– Quando falamos em concessão, é porque entendemos que precisamos ter melhorias, investimentos nesses locais até para melhorar a nossa atuação sobre a gestão. Não quer dizer que vamos entregar essas áreas, que vamos lavar as mãos, como muitos gostam de pensar. Todos os projetos contam com planos em que há ampla participação do Estado, que segue coordenando todas as ações de acordo com o plano de manejo de cada local.
Para a secretária, a concessão de outros parques – o Caracol, do Tainhas e do Turvo – já demonstra bons resultados.
– Em nenhum momento, o turismo vai se sobrepor à preservação. Vai, sim, ajudar com possibilidades econômicas. O Parque do Caracol, por exemplo, que não é um parque de conservação, mas temático, já tem valores em caixa para investir em projetos de pesquisadores externos ou internos, do próprio governo, que fomentam a conservação da natureza – complementa Marjorie.
O que poderia ter sido
Elaborado há 44 anos, o primeiro documento destinado a orientar a gestão do Parque do Delta do Jacuí já previa usos múltiplos para a área incluindo a preservação da natureza, mas também ações de turismo e lazer. O Plano Básico do Delta do Jacuí (Plandel) propôs a implantação de atividades e estruturas como passeios a pé, a cavalo e de bicicleta, banhos de rio, jogos ao ar livre, museu e centro educativo, mas o projeto jamais se transformou em realidade. Não foi a única proposta para a área que naufragou em meio às ilhas e banhados: a reforma de construções históricas localizadas na Ilha da Casa da Pólvora, entregue em 2001 com a finalidade de receber eventos e visitantes, deu lugar ao abandono.
Coordenador do Plandel e um dos principais articuladores da criação do parque do Delta, lançado formalmente em 1976, o ex-servidor municipal e arquiteto Udo Mohr, hoje com 85 anos, lembra que as diretrizes originais da área dividiram o delta em diferentes zonas, com permissões de uso equivalentes à vulnerabilidade ecológica de cada uma. Incluíam áreas de reserva biológica, mais restritas, outras de proteção não tão rígida e até de ocupação urbana, onde já havia comunidades consolidadas a exemplo da Ilha da Pintada.
– A Ilha da Casa da Pólvora é uma das mais preservadas do parque. Até é possível ser utilizada, e o primeiro plano básico já previa isso, mas desde que com muitos cuidados como limitar atividades que tenham alto impacto ou o número diário máximo de visitantes – avalia o arquiteto.
A elaboração das regras incluídas no Plandel mobilizou um grande número de pessoas sob a coordenação de Mohr: 15 profissionais de biociências, sete de paisagismo, três de geociências, três de arquitetura, um de saúde e um sociólogo, além de um contingente de assistentes e estagiários que elevava a conta para perto de cem pessoas. Um dos capítulos do documento se detém, especificamente, sobre as possibilidades de utilização do parque para lazer. Passeios a cavalo seriam permitidos “em áreas que já sofreram alterações antrópicas (humanas)”, enquanto passeios de bicicleta ocorreriam na margem leste da Ilha dos Marinheiros. Os circuitos a pé poderiam ser feitos por meio “da existência ou não de uma rede de trilhas”. Áreas de banhado poderiam “ser servidas de equipamentos especiais (passarelas, por exemplo)”. Já a circulação por barco deveria envolver embarcações maiores e outras menores, que seriam alugadas em áreas destinadas a esse fim.
O documento estabelecia ainda qual o tipo de aproveitamento para cada setor do delta e o número máximo de visitantes autorizados ao dia. No caso da Ilha da Pólvora, que concentra os pontos de maior interesse do atual projeto de concessão do parque à iniciativa privada, o Plandel admitia piqueniques, passeios a pé e visitas a museus que seriam instalados na ilha, com quantidade máxima de turistas a serem recebidos variando de 96 a 400 por dia, dependendo do local.
– Nada do que foi previsto nesse sentido acabou acontecendo – afirma Mohr, que também é um dos primeiros integrantes da Agapan.
Um reduto de explosivos
Localizado defronte ao Cais Mauá, à vista de todos, mas ainda assim desconhecido de grande parte da população, um conjunto de construções históricas da Ilha da Casa da Pólvora que deveria receber eventos e oferecer lições sobre a natureza por meio de um museu está, ele mesmo, virando aos poucos parte do ambiente. Raízes descem do forro e serpenteiam pelas paredes, parte do trapiche por onde deveriam desembarcar visitantes já desmoronou e repousa no fundo do Guaíba, e a vegetação toma conta das passarelas elevadas que conduzem de uma edificação a outra (o solo alagadiço dificulta o acesso ao nível do chão). As estruturas foram reformadas a um custo de R$ 2,6 milhões duas décadas atrás pelo Estado, chegaram a receber eventos, mas foram abandonadas nos anos seguintes.
O nome e os prédios existentes na ilha devem sua origem a uma dificuldade crônica experimentada pela Porto Alegre dos séculos passados: encontrar um lugar seguro para guardar a pólvora tão necessária em uma província marcada por conflitos armados. A construção de um paiol e de um posto de vigilância no terreno também conhecido antigamente como Ilha do Paiva foi a terceira de quatro tentativas para depositar o material explosivo nas imediações da área central ou do Guaíba – e confirmou a dificuldade de colocar em prática projetos destinados ao local. Segundo o historiador Sérgio da Costa Franco (1928-2022), as edificações começaram a apresentar problemas de conservação apenas um ano depois de construídas, no século 19, em razão da alta umidade e da instabilidade do solo.
Em seu Guia Histórico de Porto Alegre, Franco recorda que o primeiro depósito do tipo foi erguido pelo brigadeiro José Marcelino de Figueiredo em 1773. Mas, segundo descrição do ex-governador da capitania Paulo Gama, era um “insignificante armazém de barro no centro da povoação”, provavelmente localizado na esquina das vias Riachuelo e Vasco Alves. Um segundo abrigo, mais resistente, foi erguido nas imediações da chamada Ponta do Melo, atual Parque Pontal. O célebre botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, ao deixar a cidade de barco, em 1821, documentou sua existência em anotações: “A Ponta da Casa da Pólvora, bem como a do Dionísio (nas imediações do atual Clube Veleiros), fica do lado esquerdo do lago (Guaíba) e tem esse nome devido ser aí o depósito de pólvora de Porto Alegre”. Mas não o seria por muito mais tempo.
Num dos tantos temporais que castigam os porto-alegrenses, em julho de 1831, um raio atingiu em cheio o prédio e o fez voar pelos ares. A cidade, traumatizada, passou a estocar o material em locais improvisados até resolver exportá-lo para a ilha chamada, a partir dali, da Casa da Pólvora ou, apenas, da Pólvora. Para isso, se construiu um paiol e, ao lado, uma casa da guarda com uma torre que oferece uma visão ímpar do delta e do centro da Capital. Mas, segundo Sérgio da Costa Franco, “jamais uma obra pública teve tão curta utilidade”: em apenas um ano, o depósito construído à semelhança de uma igreja medieval já estava com as paredes rachadas devido à pouca solidez do terreno. A forte umidade, que ameaçava a funcionalidade da pólvora, foi a centelha que faltava para o governo resolver transferir o paiol novamente e abrigá-lo na Ilha das Pedras Brancas, mais ao Sul.
Os prédios foram restaurados em 2001 com recursos do Pró-Guaíba, mas atualmente o cenário é novamente de abandono. Além do trapiche quebrado e das passarelas tomadas por vegetação, a Casa da Guarda está tomada de mofo. O forro apresenta sinais de deterioração e abelhas mortas se acumulam sob algumas janelas. Há teias de aranha por tudo. No antigo paiol, restam mostruários vazios e parcialmente destruídos que deveriam guardar amostras de animais e vegetais representativos do delta para fins educativos. Há, ainda, um gigantesco painel de oito metros de largura por quatro de altura com um desenho da vegetação das ilhas.
– Uns meses atrás, vieram aqui e roubaram um ar-condicionado, um gerador de energia e outras coisas que ainda restavam – lamenta um dos únicos moradores da região, Luiz Carlos Garcia da Silva, o Caco, 72 anos, que diz viver na ilha há quatro décadas. Há 30 anos, completamente sozinho, desde que sua mulher morreu.
Ocupando uma terceira edificação, mais moderna, que originalmente deveria ser usada como laboratório e espaço de estudos, ele vive sem luz e sem qualquer vontade de morar em meio à civilização, a carros, buzinas e calçadas lotadas.
– Meus filhos já tentaram me convencer a me mudar para a cidade, até a ir para Cidreira, mas, por mim, vou morrer aqui – conta Caco.
Ele conta que já chegou a receber um salário do Estado para trabalhar como guardião da ilha, mas hoje vive com um benefício do governo federal e de alguma coisa que ainda pesca. Certa vez, quando saía com seu barco, o “Ilha da Pólvora”, para tentar a sorte com o anzol, viu dois homens se aproximando do trapiche em uma pequena embarcação a remo. Quando voltou, haviam vasculhado suas coisas e roubado seu dinheiro. De vez em quando, muda de ilha para fazer compras, visitar algum dos cinco filhos ou carregar o celular. Mas, assim que possível, navega de volta para sua casa e para a visão da metrópole por trás dos armazéns do Cais Mauá.
Não sabe qual será seu destino se a concessão da área se confirmar.
– Se me deixarem, eu fico.