É a 15 quilômetros de casa que os moradores de Muçum, no Vale do Taquari, se despedem de familiares e amigos mortos na enchente. O município de 4,6 mil habitantes foi arrasado pelas enxurradas que atingiram o Rio Grande do Sul nesta semana. Diante da situação em que se encontra a cidade, tomada por ruínas e lama, em razão da catástrofe que não poupou nem cemitérios, a vizinha Vespasiano Corrêa serve de abrigo para este momento de dor.
Neste sábado (9), nove pessoas são veladas no ginásio de uma escola infantil na área central. Cerca de 20 minutos de carro separam os dois municípios, unidos nesta manhã por uma tentativa de amparo.
Por volta das 6h, os policiais militares já haviam bloqueado com cones os principais acesso ao ginásio, que fica próximo à prefeitura. Do lado de dentro, ouvia-se o som da chuva que voltou a atingir a região neste sábado, enquanto PMs carregavam os esquifes em direção à quadra de esportes.
— Estamos aqui para fazer o policiamento, mas a atuação da Brigada Militar já foi além disso e se transformou numa missão humanitária. Estamos aqui para garantir que essas pessoas possam se despedir num momento de intimidade — explicou o comandante do 2º Batalhão de Choque da BM, major Rodrigo Kunsler, sobre o auxílio prestado no local.
É neste espaço que familiares se despedirão de nove vítimas da enxurrada. Outro corpo de morador de Muçum será velado em Canoas, na Região Metropolitana, também neste sábado.
O velório em Vespasiano Corrêa estava previsto para ter início às 7h, numa despedida breve. Mas, antes disso, já havia familiares no local.
Está prevista uma missa às 9h, que será realizada num altar montado no palco do ginásio. No fim do velório, os corpos serão encaminhados para sepultamento em cemitérios da região (veja abaixo).
Pouco antes das 7h, os policiais desembarcaram o nono e último caixão a chegar no ginásio. Os sinos da igreja tocaram logo depois.
O velório coletivo deste sábado não contempla todos que perderam a vida no município. Até o momento, 15 pessoas foram encontradas mortas em Muçum. Há ainda pelo menos 30 desaparecidos na cidade, segundo o levantamento da Defesa Civil.
Despedida
Prefeito de Muçum, Mateus Trojan afirmou que o município passa neste momento pelo reestabelecimento dos serviços públicos e do abastecimento de água e telefonia.
— A questão de energia elétrica está em andamento. Agora o foco é no atendimento psicológico, no atendimento humano através das equipes de saúde, com as pessoas que estão debilitadas emocionalmente e com a Defesa Civil, por questão de segurança — disse.
Ao chegar ao local, o prefeito abraçou familiares das vítimas.
— A ideia seria nós passarmos força, mas vou dizer que não consegui muito, acabei desabando. Mas a ideia é dizer para as pessoas que não estão sozinhas — declarou.
Já o prefeito de Vespasiano, Tiago Michelon, falou pouco antes do início da missa.
— Que possamos juntos reconstruir a nossa mãe Muçum, que tanto fez por Vespasiano. Juntos vamos virar essa página — disse.
Logo depois, o prefeito de Muçum também voltou a falar sobre a tragédia. Iniciou a fala emocionado, dizendo que a cidade está destruída.
— São amigos dos quais temos que nos despedir hoje. É por vocês, famílias, que vamos reconstruir Muçum, e em memória a essas pessoas que jamais serão esquecidas — discursou.
Sepultamentos
Durante a manhã, foram confirmados os locais onde ocorrerão os sepultamentos das vítimas. O casal Alvaro Pietta, 75 anos, e Beatriz Maria Pietta, 72, e o filho Macximiliano Ricardo Pietta, 46, serão sepultados no cemitério de Muçum. O local também foi devastado, mas, ainda assim, três sepulturas foram reservadas para a família.
As demais vítimas serão sepultados em cemitérios da região.
O casal Genecilde de Freitas, 52, e Sebastião de Oliveira, 60, será enterrado no Cemitério Morige de Roca Sales. Também no município, no Cemitério Aparecida, será sepultada Joeci Filiceti, 64.
Pai e filho, Danilo Lourenzi, 71 anos, e Vagner Lourenzi, 43, serão enterrados no cemitério municipal de Anta Gorda. Já Zilda Bonatto do Amaral, 90, será sepultada no cemitério Santo Antão de Encantado.
Apoio psicossocial
As famílias das vítimas da tragédia estão recebendo apoio psicossocial. Equipes de voluntários foram montadas para fazer desde o acompanhamento durante o reconhecimento dos corpos até o momento de despedida e luto.
O intuito é tentar minimizar os impactos da tragédia. O trabalho é semelhante ao que foi realizado com familiares das vítimas e sobreviventes do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, há 10 anos.
A fundadora da Rede de Apoio Psicossocial (RAP), Melissa Couto, psicóloga especialista em emergências de desastres, está coordenando as equipes que prestam assistência às famílias.
— Estamos buscando ofertar apoio para todas as famílias — disse.
Também fundador da RAP, o psicólogo Marcelo Perpétuo está fazendo o acompanhamento das famílias no ginásio.
— Luto é um processo. Tem muitos fatores a serem considerados. Está chovendo, e a chuva traz memória. A chuva fez com que eles perdessem tudo que tinham. Estamos aqui do lado, para que eles possam fazer essa catarse, e expressar a dor — afirmou.
Além do acompanhamento no ginásio, as equipes de atendimento psicossocial também acompanham neste sábado famílias de Roca Sales que viajaram a Porto Alegre para fazer a identificação das vítimas. Em Roca Sales, neste sábado há outro velório ocorrendo de uma das vítimas da enchente.
Memórias
O motorista aposentado Waldir Helwanger, 61, foi ao velório para se despedir da bisa Zilda, como chama a idosa de 90 anos. Dona Zilda, que residia no centro de Muçum, abrigou-se com a filha Elisabete Simonaio na tentativa de sobreviver à enxurrada, mas acabou vítima da enchente.
Waldir, que é sogro da neta de Zilda, lembra da idosa como uma pessoa que estava sempre alegre.
— Ela se despedia sempre com as mesmas palavras: saúde, paz e amor. Era sempre bem arrumada, estilosa. Gostava de cozinhar. Estava sempre com uma expressão feliz — recorda.
Na semana anterior à enchente, dona Zilda teve a casa atingida por um temporal de granizo.
— Fomos lá ajudar a cobrir com lona — recorda Waldir, que reside em Roca Sales.
O aposentado, que também teve a casa submersa pela água, perdeu todos os móveis. O filho, que mantém uma barbearia na área central de Roca Sales, na Rua General Daltro Filho, também teve o estabelecimento destruído.
— Até a roupa que estou usando hoje eu ganhei ontem. Mas o pior estamos vivendo hoje. É muito triste perder alguém. Sei como é viver essa dor — disse o aposentado que perdeu um filho há um ano.