Quando disputavam uma partida de pife, tradicional jogo de baralho, em seus vários momentos de lazer, um sempre tentava ludibriar o outro. Mas, durante os 56 anos de casados, Eurico Ernesto Scheffler, 77 anos, e Dulce Scheffler, 81, foram sinônimo de honestidade e integridade. O casal, reconhecido pelo carisma em toda a extensão do município de Roca Sales, no Vale do Taquari, está entre as vítimas fatais da enchente que afetou a região.
Companheiros de uma vida inteira, trocaram alianças em 1967 e, na sequência tiveram sua única filha, Márcia Kirsten, hoje com 51 anos. Eurico era exímio no seu trabalho com máquina descarnadeira de couro em curtume e Dulce cuidava da casa, com zelo e capricho típicos de uma família do interior gaúcho. A origem alemã transparecia com frequência, especialmente quando os dois dialogavam no idioma dos antepassados em meio a frases em português. No final, tudo acabava em boas risadas.
— Eles me levavam nos potreiros, brincávamos com canoas feitas de palhas de coqueiro e carrinho de lomba. Foi uma infância boa. Meus pais eram rígidos, claro, mas sempre no caminhão da retidão — conta Márcia, que ainda treme as mãos enquanto relata as recordações.
Por algum tempo, oportunidades de trabalho os levaram para Estância Velha, mas a aposentadoria de Eurico levou o casal de volta à cidade que tanto amavam.
— O mundo deles era Roca Sales, uma terra de gente maravilhosa, de muitos amigos. Do lado da casa, tinha uma pequena chácara. Eu dizia “pai, deu, vai sossegar”, mas ele dizia, em alemão, que ainda precisava plantar — lembra a filha.
Ainda que tivesse alguns problemas de saúde, Dulce não deixava de preparar os assados de porco com massa caseira e as sobremesas da casa. A idade avançada não os impedia de caminhar pela cidade, participar do cotidiano da igreja e conviver com a comunidade. Simplicidade, simpatia e correção inspiraram uma creche local a homenagear os dois pelo Dia dos Avós, em julho deste ano.
Foi pela televisão que Márcia soube da chuva torrencial e das águas invadindo casas no Vale do Taquari, na segunda-feira (4). Depois de muitas tentativas desesperadas, chegou a falar com os pais por telefone. Mesclando palavras em português e alemão, Eurico relatou que ainda estava tudo bem, mas momentos depois, o pai ligou pedindo que a Defesa Civil fosse até lá porque o cenário havia mudado bruscamente. Infelizmente, já não era possível algum barco chegar a casa dos Scheffler. Na última ligação entre pai e filha, apesar dos pedidos para que subissem na moradia, Eurico revelou que não conseguia mais.
Seus corpos foram encontrados na quarta-feira (6) e sepultados na sexta-feira (8), no Cemitério Evangélico de Roca Sales.
— O que me conforta é que consegui manter eles juntos por todos esses anos. Não precisavam ir daquela forma, mas entendo que não quisessem se separar até o último momento. O legado deles é o bem. Faça o bem sem olhar a quem — lastima a filha.
O gato do casal, Chico, companheiro inseparável de todos os momentos, foi resgatado e está na casa de familiares em Fazenda Lohmann, localidade no interior do município.