Por Antônio Carlos Nedel
Professor de Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP)
Enquanto os seus predecessores (os filósofos pré-socráticos) se esforçaram para entender as leis da natureza e o seu funcionamento, Sócrates voltou sua inteligência para a compreensão do sentido da vida humana. Sua reflexão de índole racional mostrou-lhe que vive na essência do ser humano a aspiração de realizar a existência de acordo com o bem e o justo.
Se isso é verdade, por que na vida prática as pessoas costumam agir em desacordo com essas virtudes? A raiz da contradição está na ignorância de si mesmo, que guia os homens pela equivocada via das vontades derivadas das paixões irracionais.
É possível mudar esse trágico destino que macula a história humana com o triunfo do mal e da injustiça? Sim, desde que nos orientemos por um conhecimento que nos leve ao encontro de nós mesmos e ilumine a verdade da nossa consciência, oculta sob o obscuro véu do domínio sensorial.
O ensinamento socrático inspirou-se no lema tirado do oráculo de Delfos, o apolíneo “conhece-te a ti mesmo”. Para executá-lo, ia diariamente à Ágora exercer a sua pedagogia, utilizando o método dialógico da maiêutica, para desentranhar o conhecimento já contido na pessoa que ele interrogava. Por isso, comparou o seu ofício com o da parteira, que também traz o ser humano para a realidade da vida. O filósofo Platão, então um jovem aristocrata, ouvia atentamente as lições do mestre Sócrates e acompanhou chocado o processo movido pela democracia ateniense que o condenou injustamente à morte.
No diálogo Crito, Platão descreve a forma como Sócrates recusou o plano de fuga preparado por amigos com a conivência do poder da pólis, preferindo assumir a condenação derivada de um processo legal em detrimento da fuga ilegal. Já no diálogo Fédon, profundamente consternado, Platão descreve as derradeiras palavras do mestre, ressaltando sua serenidade ao falar da separação da alma e do corpo, em meio aos devastadores efeitos da cicuta, o veneno utilizado para a execução da sua sentença.
O desgosto com a grave injustiça perpetrada contra Sócrates pela democracia ateniense motivou a partida de Platão para um longo exílio. Quando retornou, já descrente com a pedagogia público-política, voltou-se para o ideal especulativo do saber teorético e fundou, no Jardim de Academus, situado nos arredores de Atenas, a sua escola, que denominou Academia. Ali começou a desenvolver os contornos teóricos da sua sociedade perfeita, viabilizada por um Estado justo, onde os governantes, nutridos pela sabedoria das ideias, estariam aptos para compreender o eterno sentido do bem, e governar em sintonia com ele, pois, é a sabedoria que propicia um sábio governo, e ela consiste no conhecimento racional do bem.
As linhas gerais do utópico Estado justo de Platão estão no seu diálogo República. No livro IV do diálogo, ele define a justiça do Estado justo, e ela consiste em que cada qual deve realizar o trabalho que compete a sua classe, sem interferir no trabalho das outras classes, todos obedecendo uma lógica geométrica que conduz ao bem comum.
O sentido da teoria que estrutura normativamente a ordem do Estado justo no qual os seres humanos e todas as coisas têm definido o seu lugar e função inspira-se no equilíbrio proporcionado pelo determinismo lógico-causal da ordem cósmica, que combate o desequilíbrio da hybris e continuamente se restaura, num ciclo de perene harmonia.
Com esse cosmos ordenado pelas leis eternas da perfeição divina, o Rei-filósofo-legislador se conecta, transcendendo as limitações das percepções empíricas, numa rigorosa ascese espiritual-ideal. Ei-lo, então, racionalmente apto a fazer as leis da pólis, tão justas e perfeitas, como as leis divinas que regem o cosmos.
E assim, pela primeira vez na história do pensamento jurídico ocidental, numa transcendência idealista e lógico-formal, Platão consegue realizar a utópica síntese entre a lei natural e a lei humana, identificando a Justiça e a possibilidade da sua realização prática, em imanência com a coerciva realização política das leis do Estado.