Por Antonio Carlos Nedel
Docente na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP)
A crise que atinge o direito hoje está inserida na crise geral que desconstrói os referenciais culturais que erigiram nossa civilização.
No que concerne ao direito, a radicalidade iconoclasta do relativismo niilista não apenas põe em causa aspectos contingentes da sua normatividade, mas ameaça a subsistência histórica do seu sentido, vinculado a valores que a complexidade estrutural das sociedades contemporâneas recusa. Isso significa que o direito, efetivamente, pode vir a desaparecer.
Impossível o desaparecimento do direito, bradarão em coro os juristas, invocando o ciceroniano aforismo do ubi societas, ibi ius – máxima que vinha dotada de inquestionável perenidade no imaginário jurídico do Ocidente. No entanto, como ensina a lucidez de Castanheira Neves, nela não pode mais descansar preguiçosamente a reflexão jurídica que quiser compreender criticamente o sentido do direito no mundo contemporâneo.
A compreensão do aforismo desdobrada pelo ensino jurídico ao longo dos séculos levava à dedução de que o desaparecimento do direito condenaria as sociedades humanas ao caos desagregador da anomia anárquica.
Na verdade, o que já se pode constatar é a emergência de uma nova ordem que prescinde do direito e se vale de outros reguladores sociais mais adaptáveis às exigências do nosso tempo.
Assim, em substituição ao direito, a nova ordem assume um caráter meramente funcional, onde o direito desaparece desfigurado por uma avassaladora e radical instrumentalização técnico-burocrática. Um olhar crítico revela que a fonte dessa normatividade é o pragmatismo utilitarista da vontade do poder econômico, que se expressa em termos tecnológicos e conduz inexoravelmente para o triunfo de um absolutismo tecnocientífico como modelo de organização social.
Deve-se reconhecer que a dominação da vida e do direito pelo cientificismo economicista vem justificada pelos êxitos notáveis das descobertas tecnológicas. Assim, guiadas pela necessidade de uma sempre maior eficiência econômica, as instituições políticas estatais desempenham a função legislativa, produzindo um regramento que, revestido formalmente de juridicidade, em verdade transforma politicamente o direito em instrumento de planificação econômica, subtraindo a sua autonomia. Nesse contexto, a política, despolitizada do seu verdadeiro sentido, serve aos interesses da economia, e, submetida pela sua racionalidade instrumental, funde-se com ela numa tecnologia social desvinculada do direito. Isso significa que, num mundo humano submetido à unidimensionalidade econômico-tecnológica, proclama-se o fim da história, dissolve-se a validade ética e, numa realidade sociocultural fragmentada e desintegrada, só resta a hegemonia econômica comandando a exploração técnico-racional do mundo com a voracidade insaciável da hybris.
Alheios ao desaparecimento do direito, homens e mulheres, domesticados pela técnica, seguem o rumo determinado pela mão invisível do mercado, que aponta para a ilusão artificial do paraíso consumista, onde os aguarda o vazio e a dura constatação do fracasso humano.
Enquanto isso acontece, o direito vai desaparecendo e levando com ele o sentido ético da vida, a liberdade e a dignidade da pessoa humana.
Mas, se as considerações desenvolvidas neste texto são verdadeiras, e elas, infelizmente, o são, também é verdade que a consumação do direito ainda não se realizou.
Sim, nesse horizonte normativo que exclui seu sentido em prol de uma organização formal, estrutural, funcional e acrítica, o direito resiste.
Ele resiste no anseio, ainda vivo, de seres humanos que querem coexistir, democraticamente, com a dignidade de pessoas dotadas de autonomia e responsabilidade ética. Tal aspiração para se realizar na vida prática, reivindica a presença do direto.
Assim sendo, a continuidade histórica do direito, com a carga de humanismo presente no dever-ser da sua normatividade, ou o seu desaparecimento no vazio de um mundo obscuro dominado pela técnica, será, em última análise, uma opção da humanidade.