Por Antonio Carlos Nedel
Docente na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP)
Deriva do pensamento realista de Aristóteles a distinção entre episteme e phronesis. Distinção que, traduzida em termos latinos, chegou à língua portuguesa nas designações de ciência e prudência. Gestadas na mesma fonte que é a inteligência humana, elas se afastam no processo do conhecimento, pois divergem no que concerne à eleição dos objetos a serem conhecidos.
Enquanto a motivação do intelecto epistêmico é de índole teorético-científica, tendo por fim a busca da verdade objetivamente demonstrável, o saber prudencial representa o esforço que a razão humana livremente desenvolve para compreender o sentido do bem, e orientar, com base nele, as ações na vida prática. Como se pode ver, a razão prática derivada da prudência visa fundamentar a validade das nossas condutas, tendo, portanto, uma índole normativa.
Todavia, como observou Tomás de Aquino, a razão teórica e a razão prática não são potências diversas, pois a verdade e o bem incluem-se um no outro, sendo a verdade um certo bem, senão não seria desejável, como também é o bem uma certa verdade, senão não seria inteligível. Nesse sentido, também Kant acentuou que a prática sem a teoria é cega, e a teoria sem a prática é vazia.
No fundo, as conexões entre as duas modalidades da razão convergem para a síntese profunda do sentido essencial da inteligência humana.
Se isso evidencia o equívoco de uma dicotomia radical, também é forçoso reconhecer que ver a prática sob o viés epistemológico promove sua neutralização teórica e lhe retira o movimento histórico, promovendo um agir vazio de valores e alienado da liberdade crítica.
Aqui chegado, é o momento de voltar ao título deste breve texto e, junto com Castanheira Neves, pedir vênia aos positivistas e neopositivistas de todos os quadrantes que veem o direito sob o prisma epistemológico, para lembrar, com Aristóteles, que somos um animal político e o encontro humano da nossa convivência social deve-se cumprir em sintonia com os valores essenciais das nossas aspirações. Eis a fonte do dever-ser, que dá sentido e legitima a validade normativa, sem a qual, no seu sentido mais profundo, se degrada e se desumaniza o mundo prático. Aqui se evidencia com toda a clareza que o direito, enquanto realidade social e ordem normativa, é uma prática, uma intenção prático-normativa que tem por princípio a realização material da justiça na convivência humana que comunga o mesmo mundo.
Assim, enquanto ente cultural inserido no processo dialético da história, tendo por aspiração contínua a realização material da justiça em conexão com a dignidade ética da pessoa humana, o direito jamais poderá se cristalizar nos termos de uma realidade consumada, como o são as verdades científicas depois de devidamente comprovadas. Logo, a pergunta pelo sentido do direito e pela sua realização remete a um contínuo transcender histórico, que é também a expressão da própria essência existencial da condição humana.
Isso significa que o direito existe para resolver os problemas práticos que a prática vivência humana produz, e os critérios metodológicos para a resolução desses problemas devem ser prático-prudenciais e não teorético-epistemológicos, pois a ciência, metodologicamente falando, inevitavelmente abstrai das contingências humanas na resolução dos problemas práticos engendrados pela vida social.
Podemos então dizer que a aspiração epistemológica de resolver os problemas humanos, cientificamente, tem por base o equívoco que iludiu muitos autores consagrados e reside na acrítica associação entre racionalidade e cientificidade.
A consequência metodológica desse equívoco resulta numa programação estratégica em que a prática se transforma em tecnologia e os melhores juízes passam a ser robôs, os juristas do futuro já presente em que a ponderação vira cálculo utilitário e a argumentação, programa de software.
Tudo nos leva a concluir que, em nome da realização material do direito, há que se recuperar a distinção entre ciência e prudência, lembrando, mais uma vez, que os valores que o direito busca realizar no universo da existência humana são de índole prático-normativa. Sendo assim, quer o direto, quer a existência humana que ele busca ordenar normativamente, encontram o seu sentido na ética, isto é, no saber prudencial.