O relógio marcava 21h quando a dona de casa Gesiele de Oliveira Cesar, 39 anos, percebeu a água entrando por debaixo da porta de sua casa de madeira na localidade de Passo do Marco, em Caraá, no Litoral Norte. Era um mau sinal. Naquele 15 de junho, o ciclone extratropical já devastava o município, e rios transbordavam carregando casas inteiras, árvores robustas e animais. Para ela, as perdas seriam maiores.
— Estava grávida de gêmeos e perdi meus dois bebês — conta, emocionada.
Quando a água do Rio dos Sinos começou a invadir sua casa, que tem apenas três peças, Gesiele estava acompanhada pelo marido, Jeferson de Castro, 46, e pelo filho, Samuel, de três anos. Os dois assistiam à televisão, e o menino mexia no celular. O rio passa a cerca de 300 metros de sua residência e logo foi ganhando volume.
A cadela Paçoca e o gato de estimação já tentavam nadar no pátio da casa. Os dois tiveram sorte, mas o mesmo não aconteceu com os demais animais da família. Vinte e três galinhas, 12 coelhos e um porco foram arrastados para a morte. Pela janela, o casal lembra de ver bois boiando e fazendo força para manter a cabeça fora da água.
— Fiquei com água nos ombros e os móveis boiavam — lembra a mulher.
O drama foi aumentando. A água subia ainda mais. O casal pegou o filho e o colocou em uma caixa de isopor. Todos subiram para um pequeno sótão. O marido arrebentou as telhas para pedir ajuda. Sinalizava com uma lanterna. Mas para onde olhava, só via água. E volumosas correntezas.
— Foi quando eu disse para ela: vamos morrer em paz. Não tem o que fazer — relata o marido, que trabalha no setor calçadista.
O casal vive há três anos em Passo do Marco. E há 15 anos no município, que teve cinco mortos em função da passagem do primeiro ciclone.
Ninguém apareceu para salvá-los. A água já estava a mais de um metro e meio dentro de casa. Até hoje, a marca está nas paredes, como uma lembrança permanente da aflição no dia em que o casal e o filho estiveram cara a cara com a morte.
— Eu tinha 2% de bateria no celular. Então fiquei sem telefone. E faltou luz — narra a mulher.
Não havia mais o que fazer. Dentro de casa, estava tudo perdido. A estrutura tremia. E o telhado estalava. O risco era a casa ser arrancada e levada pela fúria das águas.
— Estávamos orando — diz o marido.
Nesse momento, o carro foi arrastado pela correnteza. O Fiat Uno parou 15 metros adiante. E as horas passavam. A madrugada foi de tensão, até que, de repente, a água foi baixando.
— No dia seguinte, era só lama — recorda a dona de casa.
O ciclone passou. Paçoca voltou para casa, mas o gato levou duas semanas para dar o ar da graça. O carro teve perda total, assim como tudo dentro de casa.
Passaram-se quatro dias. Gesiele, ainda nervosa com a provação recente, passou mal. Foi para o hospital, onde soube que perdeu os gêmeos. Estava grávida havia cerca de 45 dias.
A tristeza precisou dar lugar ao esforço de reconstrução. O casal foi ajudado pela igreja e já conta com alguns móveis e até fogão a lenha dentro de casa. O telhado foi consertado pelos dois.
E assim a vida recomeçava. Até chegar o segundo ciclone, que não castigou tanto o município. Porém, o casal viveu novo drama. Os dois correram para levantar os móveis.
— Eu corri de casa levando o Samuel no colo. Nos abrigamos no CTG Sentinela dos Sinos — compartilha a esposa, que não sabe nadar e poderia se afogar se as águas repetissem a violência de um mês antes.
O vento era forte. O receio de o Rio dos Sinos transbordar novamente não saía da cabeça do marido.
—Decidi ficar. Peguei uma corda para me amarrar e um facão, para o caso de não ter mais o que fazer. Fiquei com Deus — lembra Jeferson.
As horas passaram, e o Rio dos Sinos chegou a transbordar um pouco. Mas não chegou perto da casa. E foi assim que Jeferson, de olho na corda e com a mão firme segurando o facão, e Gesiele, abraçada ao filho no CTG, venceram o medo. A morte passou mais longe da família dessa vez.