Ao homologar a Terra Caingangue Rio dos Índios, no município de Vicente Dutra (norte do RS), nesta sexta-feira (28), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) provocou temores de um lado e júbilo, de outro. Entre agricultores e empresários de etnia branca que vivem nas áreas que se tornarão reserva indígena, o receio é de que tenham de se mudar de uma hora para outra, perdendo empreendimentos de décadas. Já entre os indígenas, o momento é de festejos. Eles lutam há mais de 20 anos para que lhes seja concedida uma área de 711 hectares, que pertenceu a seus antepassados e foi ocupada por colonos de origem europeia, a partir da década de 60 do século 20.
Vicente Dutra, município que no século 19 era conhecido como Águas do Prado, é famoso por suas termas minerais. Pois os 143 caingangues que agora foram beneficiados pela homologação da área indígena vivem espremidos num terreno de cerca de oito hectares (equivalente a oito campos de futebol). Toda a região, até o século 19, era predominantemente indígena, mas a chegada de imigrantes europeus (sobretudo italianos) mudou o cenário. Uma reforma agrária em meados do século 20 levou à saída da maioria dos caingangues da região. Só que a Constituição de 1988 reconheceu que vários povos indígenas no Brasil foram removidos contra a própria vontade e determinou a devolução gradual das terras que lhes foram tiradas.
Esse é o dilema em Vicente Dutra. Em 1997, um grupo de caingangues decidiu cobrar, na marra, o cumprimento da Constituição, e ocupou o balneário público, o principal do município. Desfilaram pelas ruas principais da cidade com seus arcos, flechas e cocares. Após alguns dias, desocuparam o centro de águas termais, prometendo novas mobilizações, se nada acontecesse.
Em 2013, um outro grupo de caingangues acampados em Vicente Dutra resolveu protestar contra a lentidão do processo de regularização da terra indígena Rio dos Índios. Invadiu um balneário privado, o Águas do Prado, onde existem 196 cabanas que são alugadas para turistas, principalmente durante o verão. Houve confronto com um vigilante, que disparou contra os indígenas. Em sua defesa, alegou ter sido agredido com faca. O confronto também envolveu outros índios e brancos e resultou em incêndio de escritórios comerciais, mas não teve feridos graves. Os caingangues desocuparam a área horas depois.
"Vai nos criar um problema social", diz prefeito
Desde então, caingangues e descendentes de europeus convivem sem grandes sobressaltos na região. Só que, nesta sexta-feira (28), a tensão voltou a reinar. O telefone da presidente da Associação dos Amigos das Águas do Prado, Marli Rodrigues, não para de tocar, emenda uma ligação na outra. São sócios das 196 cabanas do complexo Águas do Prado, composto de 196 cabanas situadas numa propriedade de 25 hectares. Em média, cada uma pertence a um proprietário, que aluga as casas para turistas, sobretudo durante o verão. O aluguel costuma ser de R$ 150 por dia na estação.
O empreendimento oferece aos visitantes piscina gelada e aquecida, lamaterapia e conta até com um centro de saúde. E fica no coração da área que será agora devolvida aos indígenas.
— O pessoal tá apavorado. Ninguém sabe o que vai acontecer, se vai ser indenizado, se vai ter de se mudar — resume Marli.
Ela diz que a convivência com os caingangues é boa, apesar dos embates do passado, quando os donos das cabanas eram outros:
— Eles vendem artesanato aqui dentro do complexo, alguns prestam serviços e são remunerados por isso, lógico.
A empresária diz que 17 famílias residem ali mesmo, enquanto os demais donos de cabanas têm outras residências. Reina incógnita quanto ao futuro, algo que também preocupa o prefeito de Vicente Dutra, Tomaz Rossato (MDB). Ele calcula que cerca de 300 pessoas de origem europeia residem no que será a futura terra indígena, homologada esta semana.
— Infelizmente, vai nos criar um problema social. Tem colonos que vivem há sete décadas ali. Terão de se mudar. Imagina se forem jogados para um assentamento em Santana do Livramento, por exemplo? — questiona o prefeito.
Funai fala em indenização
A recém-nomeada Coordenadora Regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Maria Inês de Freitas (que é caingangue), considera que uma solução pacífica para o dilema dos brancos residentes em terras indígenas será construída.
Isso porque a homologação não significa posse imediata de toda a terra por parte dos indígenas.
— Tem todo um período de adaptação, a exemplo do que aconteceu em várias reservas indígenas gaúchas, como a Serrinha. À Funai, caberá indenizar os proprietários dos imóveis pelas benfeitorias que eles mantêm na área de Vicente Dutra. E vamos conversar com o governo do Estado para que eles sejam indenizados pela terra ou recebam novas áreas, em outras partes do Rio Grande do Sul — pondera Maria Inês.
Já existe, inclusive, na Justiça Federal uma ação judicial na qual é reivindicado, caso saia a homologação, que os descendentes de europeus residentes na área indígena recebam local para morar.
A reportagem tentou falar com o cacique caingangue de Vicente Dutra, Luís Salvador, mas ele não deu retorno.