Em setembro de 2021, um crime ambiental na cidade de Rio Grande, no sul do Estado, gerou uma multa de R$ 4,1 milhões a um homem que praticou pesca ilegal na região. A infração contraria a legislação que proíbe “matar, perseguir, caçar, apanhar, coletar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem autorização”. Essa regra existe para evitar a extinção de uma espécie, por exemplo.
Em abril do mesmo ano, dois homens foram autuados em Porto Alegre, em R$ 564 mil cada, por também cometerem crimes contra a fauna. Neste caso, contra animais da Mata Atlântica, que é considerado um dos grandes biomas brasileiros e uma das florestas mais ricas em diversidade no mundo.
Além dos valores altos e dos prejuízos à natureza, os dois casos têm outro aspecto em comum: fazem parte de uma lista de processos com pagamentos pendentes que esperam para serem analisados e depois julgados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A autarquia federal atua como polícia ambiental e implanta políticas nacionais de licenciamento e de permissão de uso de recursos naturais. Quem desrespeita as normas comete crime contra o meio ambiente e é penalizado conforme a legislação.
No entanto, o trâmite judicial é demorado. Desde 2019, há 539 processos gerados por multas ambientais aplicadas no Rio Grande do Sul que aguardam julgamento do Ibama. Desse total, 85% ainda estão pendentes de análise, antes mesmo de serem julgados, como os das multas de valores maiores mostradas acima (entenda, abaixo, o que ocorre após a multa por dano ambiental).
Os dados foram obtidos por GZH pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Se somados os valores de todos os processos que aguardam julgamento, o total chega a R$ 70,6 milhões.
Esse valor se equipara a cerca de sete vezes a quantia que foi recebida pelo órgão em pagamentos de multas no mesmo período (R$ 9,2 milhões), o que mostra que, apesar da fiscalização, as penalidades contribuem com uma pequena fatia na arrecadação total do Ibama/RS. De 2019 a 2021, o dinheiro que veio das multas representou 6% de uma receita de R$ 150 milhões.
Dentro do Ibama, há um setor que é responsável pelas análises e julgamentos dos processos, a Equipe Nacional de Instrução (Enins). Esse grupo foi instituído em uma portaria de 2020 para instruir, preparar e relatar processos que apuram infrações ambientais e pedidos de revisão de sanções. Segundo o Ibama/RS, “independentemente de o interessado ter apresentado recurso, o processo deve ser instruído na Enins e julgado”.
Quase 90% das multas são judicializadas
De acordo com a superintendente do Ibama/RS, Claudia Pereira da Costa, no ano em que o auto de infração é lavrado, quase 90% das multas não são pagas porque são judicializadas. Segundo ela, há casos que levam de seis a sete anos para serem encerrados.
Para uma infração prescrever, é preciso que o processo fique parado e sem movimentação pelo órgão competente. O tempo de prescrição varia de acordo com o processo. Em março, reportagens dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo mostraram que ao menos 5 mil infrações datadas de 2020 em todo o país corriam o risco de prescrever.
No Rio Grande do Sul, 38 processos prescreveram entre 2019 e 2021, somando mais de R$ 1,4 milhão que deixaram de ser arrecadados. Dos processos que ainda esperam um julgamento desde 2019, nove estão mais perto da prescrição, com prazos de encerramento entre outubro e dezembro de 2023. Três deles ainda não foram analisados. As multas desses nove processos somam quase R$ 26 milhões.
Audiências de conciliação
Para tentar agilizar os processos e os pagamentos, o presidente Jair Bolsonaro editou um decreto, em 2019, instituindo as audiências de conciliação, que podem dar opções de desconto de até 60% no pagamento, parcelamento e a conversão da multa em serviços de preservação, melhoria e recuperação do meio ambiente. No entanto, a medida virou alvo de críticas de partidos de oposição (PSB, PSOL, PT e Rede Sustentabilidade), que entraram, em 2020, com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) alegando que a demora para realizar os encontros causa uma sensação de impunidade.
Você gera uma deslegitimação da própria fiscalização ambiental porque o fiscal multa e o infrator fala "eu sei que não vou pagar tão cedo, eu sei que vou enrolar no processo, que não vai ser julgado"
SUELY ARAÚJO
Ex-presidente do Ibama e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima
Essa visão é compartilhada por Suely Araújo, presidente do Ibama de 2016 a 2018 e especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima.
— Você gera uma deslegitimação da própria fiscalização ambiental porque o fiscal multa e o infrator fala "eu sei que não vou pagar tão cedo, eu sei que vou enrolar no processo, que não vai ser julgado". E não é só conciliação, eles também estão julgando menos agora — afirma.
A especialista argumenta que oferecer descontos ou converter a infração em serviços ambientais já eram alternativas oferecidas a quem procurava o Ibama:
— Daí o governo criou uma etapa a mais, desnecessária, que tem gerado muito acúmulo de processo. Eles (Ibama) não arrumaram a parte de tecnologia da informação antes de colocar em vigor.
O promotor Daniel Martini, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público, também percebe essa falta de estrutura no órgão federal, gerando um impacto nas ações conjuntas do MP com outras entidades para prevenção ambiental.
— Claramente, quanto ao órgão federal, não há uma vontade política de realizar as fiscalizações, autuações e aplicações de multas. Por exemplo, na última operação Mata Atlântica em Pé, que coordenamos aqui no Estado do Rio Grande do Sul, o Ibama sequer teve condições de participar por falta de estrutura, por falta de pessoal, por falta de verba — relata o promotor.
A demora nos processos administrativos se dá, ao meu ver, em decorrência do déficit no quadro de pessoal. Essa falta de pessoal acaba atrasando muitos processos. Esse atraso, muitas vezes, acarreta na prescrição
CLAUDIO FARENZENA
Advogado ambientalista
O advogado ambientalista Claudio Farenzena também percebe a falta de agentes no andamento dos processos de seu escritório:
— A demora nos processos administrativos se dá, ao meu ver, em decorrência do déficit no quadro de pessoal. Essa falta de pessoal acaba atrasando muitos processos. Esse atraso, muitas vezes, acarreta na prescrição, temos muitos que prescrevem em razão de não terem sido julgados.
A conciliação vale para os autos de infração lavrados a partir de 8 de outubro de 2019. No Rio Grande do Sul, as audiências iniciaram quase dois anos após a portaria, em 30 de março de 2021. Conforme dados da superintendência do Ibama/RS, foram 66 sessões virtuais realizadas até março de 2022. Destas, 46 (ou seja 69%) foram improdutivas. Já as outras 20 tiveram sucesso.
Além disso, foram contabilizados 23 processos de infração ambiental com assinatura de um termo de adesão legal, sem necessidade de audiência. Isso significa que houve conciliação de forma espontânea por parte de quem foi multado.
Em 2021, 391 das multas aplicadas naquele ano no Rio Grande do Sul estavam pendentes de pagamento, representando quase R$ 33 milhões. No mesmo ano, foram recolhidos quase R$ 4 milhões em pagamentos de 3.077 penalidades, o que mostra que as multas com valores menores são quitadas mais rapidamente, enquanto as mais expressivas demoram a ser pagas.
Para onde vai o dinheiro das multas?
Sobre o destino dos recursos das multas, o Ibama/RS limitou-se a dizer que “a receita arrecadada pelas infrações ambientais é recolhida ao Tesouro Nacional, que por sua vez faz o repasse de acordo com as diretrizes do Ministério da Economia”. Já o Tesouro Nacional disse que “as receitas de multas ambientais ficam separadas das demais para utilização por parte do Ibama de acordo com sua previsão legal e com o orçamento disponibilizado ao órgão”.
Para a especialista Suely Araújo, uma ação mais eficaz no âmbito das infrações seria apostar na conversão das multas em ações para recuperação ambiental. Ela explica que apenas 20% dos recursos das multas vão para o Fundo Nacional do Meio Ambiente. O restante fica para o Tesouro Nacional.
O Ibama/RS alega que a falta de pagamento das multas não afeta diretamente as ações de fiscalização porque o órgão tem outras fontes de receita, como a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA), que é paga por empresas que exercem atividades potencialmente poluidoras ou utilizadoras de recursos naturais.
A TCFA corresponde ao maior volume da receita do instituto. Em 2021, por exemplo, ela gerou R$ 45,3 milhões da receita de R$ 57,6 milhões que foram recolhidos aos cofres da União por meio do Ibama/RS.
O lado de quem é multado
Em relação às empresas que são multadas, o coordenador do Conselho de Meio Ambiente da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (Fiergs), Newton Battastini, defende que as infrações sejam dimensionadas pelo dano e pelo porte da empresa, priorizando o diálogo para chegar a um acordo. O coordenador diz que sabe de recursos que duraram de dois a quatro anos até que todos os trâmites tivessem sido realizados e ressalta que, após esse processo, a multa é reajustada de acordo com o índice apontado pelo órgão.
Não adianta ser multado, a gente sempre tem que ter uma solução para que não venha a ocorrer novamente. A gente tem que cuidar para que não reincida, isso aí é um pouco mais delicado
NEWTON BATTASTINI
Coordenador do Conselho de Meio Ambiente da Fiergs
Para Battastini, o direito de questionar a interpretação do fiscal faz com que a maioria das empresas recorra para tentar resolver a questão. Ele acredita que o ideal seria ter uma fiscalização orientativa, exceto em casos de acidentes ambientais, em que a empresa deve justificar o que aconteceu.
— Não adianta ser multado, a gente sempre tem que ter uma solução para que não venha a ocorrer novamente. A gente tem que cuidar para que não reincida, isso aí é um pouco mais delicado — defende Battastini.
O advogado especialista em direito ambiental Mauricio Fernandes concorda e critica os critérios adotados para estabelecer os valores das multas, afirmando que muitas infrações são geradas por falta de conhecimento do infrator:
— O órgão ambiental deveria ser um parceiro para que a produção seja compatível com a preservação. A gente vê casos em que uma orientação poderia resolver.