O Rio Grande do Sul teve um aumento de 92,1% de perda do bioma Pampa em 2021 em comparação com o ano anterior, segundo Relatório Anual de Desmatamento no Brasil, apresentado neste mês pelo MapBiomas, iniciativa do Observatório do Clima. Foram 2.426 hectares suprimidos. No Brasil, o Pampa é exclusivo do Rio Grande do Sul e, segundo a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), representa 68,86% do território gaúcho.
Embora o Pampa apresente a menor área desmatada entre todos os biomas brasileiros, ele enfrenta uma situação que preocupa os pesquisadores.
— Os números do Pampa são preocupantes porque vêm numa escalada de aumento desde 2019. A cada ano, praticamente, dobra a área desmatada. Então, isso projeta para o futuro uma expectativa de que este desmatamento aumente de forma crescente — destaca o biólogo Eduardo Vélez, membro da Equipe Pampa do MapBiomas.
De acordo com Vélez, a área mais alterada no Pampa (o bioma, segundo a Embrapa, se estende pelo Rio Grande do Sul, pela Argentina e pelo Uruguai, ocupando uma área total de 700 mil quilômetros quadrados) é na região identificada como Serra do Sudeste, localizada entre as cidades de Encruzilhada do Sul, Caçapava do Sul, Pinheiro Machado e Herval. No ano passado, um único alerta teve suprimidos 464 hectares de vegetação nativa em Pedras Altas, que fica na região destacada pelo MapBiomas. Conforme a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam-RS), foi emitido auto de infração na área do alerta por não ter a autorização para a conversão do uso da terra. Em 2020, a maior alteração no bioma havia sido de 272 hectares.
O biólogo aponta a possibilidade de ilegalidade na retirada das matas do principal bioma gaúcho - o outro é a Mata Atlântica. O desmatamento ou a conversão do terreno é uma intervenção de alto impacto ambiental e, no Brasil, necessita de uma Autorização de Supressão da Vegetação (ASV) para ser realizado. Via de regra, o documento é emitido pelos órgãos estaduais de meio ambiente e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), nos casos em que se refere a áreas públicas federais ou projetos que envolvem dois ou mais Estados. Pelo Código Florestal, 20% da área de uma propriedade privada deve ser preservada como Reserva Legal. Se houver eventual Área de Preservação Permanente (APP), ela também deve ser preservada. O restante pode ser desmatado ou convertido (no caso do Pampa), desde que com autorização.
— O que chama a atenção nestes desmatamentos (no Rio Grande do Sul) é que não encontramos as autorizações de supressão da vegetação, que é um item obrigatório para um desmatamento ser considerado legal. Suspeitamos que a ilegalidade deste desmatamento é muito alta no Pampa — aponta Vélez.
No Brasil, o desmatamento cresceu 20,1% em 2021, na comparação com 2020, atingindo 16,5 mil quilômetros quadrados em todos os biomas, conforme o MapBiomas. O estudo encontrou indícios de irregularidades em mais de 98% dos casos, depois de refinar e validar 69.796 alertas de desmatamento em 2021 em todo o território nacional e ainda avaliar individualmente cada evento de desmatamento ao cruzar com dados de áreas protegidas, autorizações e cadastro ambiental rural (CAR).
A Amazônia, o bioma mais desmatado no país, concentrou 59% de toda área - 977 mil hectares de vegetação nativa destruídas. Na sequência, Cerrado (com cerca de 30%), Caatinga (7%), Mata Atlântica (1,8%), Pantanal (1,7%) e Pampa (0,1%). Proporcionalmente, a Caatinga (89%) e o Pampa (92,1%) tiveram a maior alta em um ano. Juntos, os biomas Amazônia e Cerrado respondem por quase 90% das perdas no Brasil.
Conforme o geógrafo e professor de Climatologia do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e diretor substituto do Centro Polar e Climático da mesma instituição, Francisco Eliseu Aquino, o desmatamento da Amazônia tem influência regional e também global. A América do Sul, principalmente o Brasil, depende da Amazônia para ter umidade, precipitação ou regularidade de precipitação ao longo do ano.
— O desmatamento da Amazônia, do Cerrado, a diminuição do bioma Pampa e da Mata Atlântica, lamentavelmente, combinarão na intensificação da mudança climática global e, principalmente, em toda a bacia do Prata (que inclui o Rio Grande do Sul), no Centro-Sul e no Sudeste do Brasil — alerta o professor.
Aquino dedica-se há quase 30 anos aos estudos da Antártica e das mudanças ambientais globais e explica que a Amazônia tem um papel estratégico por ser responsável pelos balanços hídrico e de energia para toda a América do Sul. O desmatamento dela interfere diretamente na biodiversidade, na circulação atmosférica e na diminuição do recurso hídrico, gerando déficit hídrico no Brasil e na América do Sul.
Segundo o presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Gedeão Pereira, a entidade não tem dados ou conhecimento sobre o quanto de terras foram convertidas com ou sem licenciamento. A Farsul recomenda aos produtores que mantenham as licenças ambientais atualizadas. Pereira exalta a importância da chegada da soja à região do Pampa, que estaria contribuindo para o desenvolvimento da metade Sul do Estado.
— Não temos informação do que é legal ou ilegal. Mas, de qualquer maneira, o que está acontecendo é uma evolução positiva com a chegada da soja, pois os municípios estão enriquecendo, tem mais dinheiro circulando e o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) está subindo. Esta conversão (das terras), então, aparece de uma maneira muito positiva — afirma Pereira, que argumenta:
— Estamos vendo a oportunidade que surgiu com as novas tecnologias, está ocorrendo um enriquecimento das regiões onde a soja está chegando. Se traz o enriquecimento e se traz uma melhora do IDH dos municípios, é um fato altamente positivo. Recomendamos ao produtor para ter o devido licenciamento ambiental, mas precisamos de uma certa agilidade dos órgãos de fiscalização, dos órgãos ambientais. Não é possível que um produtor peça o licenciamento e passe dois ou três anos para recebê-lo. O produtor não suporta este tipo de situação. O licenciamento é uma necessidade, mas não vemos uma agilidade dos órgãos ambientais para acompanhar esta evolução.
Prejuízos
Conforme Aquino, a conversão das terras do bioma Pampa aliada a outros fatores climáticos já desencadeados pelo aquecimento global prejudicarão diretamente o Estado.
— Quanto maior o desmatamento ou a mudança da cobertura natural da superfície de regiões gaúchas, associados a um Rio Grande do Sul mais quente, com redução de chuvas no inverno, com o aumento de precipitação na primavera e no outono, mais teremos períodos de estiagem, de solo exposto e degradado por chuva intensa concentrada e erosão de solo. Um processo está intensificando o outro. Estamos num ano quente para o planeta e, com La Niña, que tende a favorecer um agosto e um setembro mais secos. Poderemos ter uma primavera mais robusta, seca e quente, com ambiente atmosférico favorável a eventos extremos. Por consequência, um verão de 2023 com deficiência hídrica ou em crise hídrica. E isso intensificará os custos da produção, do alimento e da nossa saúde. Mais estressados, teremos mais acidentes cardiovasculares e doenças respiratórias, associadas ao ar seco e ao ambiente quente e poluído — alerta Aquino.
O professor destaca que, recentemente, áreas da França tiveram a temperatura em solo passando de 50° C. O solo nesta temperatura, acrescenta, rompe com a produção agrícola, seja qual for o estágio que esteja o cultivo.
— A intensa onda de calor em Portugal, Espanha, França, Inglaterra mostra quão perigoso é o ambiente que nós já estamos. Portanto, quando entrar o verão do hemisfério Sul, considerando o que já tem desmatado na Amazônia, no Cerrado e no Pampa, mais o déficit hídrico combinando com a La Niña, temos todo o cenário favorável para um verão seco, intensificando onda de calor com recordes de temperatura — sustenta.
Aquino acrescenta que, atualmente, os cientistas ambientais discutem se as situações previstas para daqui a 20 anos, com o aumento da temperatura média do planeta em 1,5°C, já estariam ocorrendo agora. Se sim, as consequências podem ser ainda muito piores se, de fato, a temperatura chegar à marca projetada.
— As negociações de enfrentamento da crise climática têm que ser mais audaciosas e mais rápidas porque são os próximos cinco anos, aproximadamente, a gente consegue evitar de passar de 1,5°C. Ou, quem sabe, quase chegar em 1,5, o que seria bem ruim. Só tem uma alternativa fácil e barata: interromper o desmatamento e as queimadas e intensificar áreas de preservação e de regeneração de floresta nativa porque as áreas nativas têm melhor capacidade de interação com o balanço de energia e recurso hídrico. Por consequência, estas ações beneficiarão a produção agrícola, a manutenção de água para abastecimento, o arrefecimento ambiental e a qualidade de vida. Portanto, benefício é local, regional e global — finaliza Aquino
Áreas suprimidas
No Estado, conforme a Sema, cerca 90% da área suprimida acaba sendo usada para lavouras. A maior parte para soja. Neste ano, em ações planejadas e conjuntas de fiscalização entre o Comando Ambiental da Brigada Militar (CABM), Ibama e Fepam já emitiram 35 autos de infração a partir de alertas de desmatamento no bioma Pampa.
Conforme levantamento preliminar da Sema, pelo menos 1.252 hectares de área foram suprimidos somente em 2022. Em 2021, a Sema afirma ter distribuído autos de infração a 69 áreas com desmatamento - multas são aplicadas após a constatação do fato. O Estado tem cinco anos para abrir o processo. Quando aberto, o autuado recebe o termo de notificação com as orientações para apresentar defesa ou pagar a multa. O autuado tem dez dias (a contar do recebimento do termo de notificação) para pagar a multa com 50% de desconto, conforme prevê decreto 55.374/2020. Não pagando nem apresentando defesa, o processo é homologado pelo setor que lavrou o auto de infração e vai para a cobrança. Se a defesa for apresentada, o processo é encaminhado à Junta de Julgamento que, após a análise, encaminha a notificação com o resultado e o prazo, caso o autuado queira recorrer. Se apresentado recurso, o processo é encaminhado para Junta Superior.
Desde janeiro de 2020, o novo Código Ambiental do Estado (Lei Estadual nº 15.434) reconhece o Pampa como bioma ocorrente no Brasil. Segundo a Sema, uma das primeiras iniciativas implementadas após a aprovação da lei foi o programa Campos do Sul, lançado em julho de 2020, que oferece assistência técnica especializada aos proprietários rurais que adotarem boas práticas ambientais. O programa tem como objetivo garantir a conservação dos campos nativos dos biomas Pampa e Mata Atlântica em propriedades privadas. No mesmo ano, a Secretaria e a Fepam lançaram uma portaria estabelecendo procedimento administrativo de autorização para uso de áreas convertidas em imóveis rurais no bioma Pampa.
O estudo do MapBiomas aponta que o pico do desmatamento ocorre na primavera, entre setembro e outubro. E, principalmente, na região da Serra do Sudeste. Por isso, Vélez sugere que este dado seja levado em consideração pelos órgãos fiscalizadores. Outra indicação do biólogo é ampliar as campanhas de conscientização da sociedade sobre a importância de manter os biomas vivos e desestimulando o desmatamento.
— A gente entende que já há muitas áreas para a agricultura no Pampa e não haveria necessidade de (novos) desmatamentos. Deveríamos estar no período em que a regeneração das florestas fosse o número a ser medido, e não o aumento do desmatamento — finaliza Vélez.