Falta pouco mais de uma hora para o nascer do sol e o silêncio da madrugada é rompido pelo ronco dos motores singrando ondas contra o vento. No macharedo renitente da procissão pesqueira, uma tripulação se distingue das demais. Conduzindo um bote de quatro metros de comprimento, Márcia Pereira de Souza, 51 anos, e a irmã Liane Rodrigues, 42, enfrentam sozinhas as águas indóceis da Lagoa dos Patos.
Pouco se enxerga na escuridão. No horizonte, um colar de luzes esparramado sobre a lagoa indica a localização das redes e serve de armadilha para o camarão, o pescado mais rentável da temporada. Embora o prognóstico fosse de safra recorde, até agora a carga máxima que as irmãs recolheram foi de 23 quilos, quantia irrisória para quem vive do que tira da água. Essa noite, porém, o vento virou, indicando que a sorte também pode mudar.
Debruçadas sobre a lateral do bote, Márcia e Liane começam a puxar as redes. A força exigida é prenúncio de fartura. Com metade das malhas revisadas, já não há mais espaço no barco.
É preciso ir em terra desembarcar o camarão e retornar para concluir o serviço. Ao final da jornada,sete horas após o primeiro embarque, a balança contabiliza 440 quilos do crustáceo.
— Foi o nosso melhor dia. Bem sofrido, bem cansativo, mas rendeu — suspira Márcia, enquanto fuma um cigarro acocorada numa sombra da Ilha da Feitoria.
Com 3,6 mil hectares, o território fica a uma hora e meia de navegação de Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, e funciona como entreposto durante a temporada de pesca, de setembro a maio. Considerada estratégica pelo Império por conta da proximidade dos portos de Rio Grande e São José do Norte, a ilha era usada para cultivo de linho-cânhamo, essencial à confecção de velas e cabos para a armada portuguesa.
No fim do século 18, o governo desistiu das plantações e concedeu a sesmaria ao capitão-mor Paulo Xavier Prates. Com o passar dos anos, as terras foram fracionadas e vendidas a produtores rurais da região. A maior parte pertence à Fazenda Soteia, hoje arrendada a pecuaristas. É ao redor da estância, em 10 quilômetros de praias moldadas por areais brancas e à sombra de figueiras centenárias, que muitos pescadores montam acampamento.
Se antes a ilha era parada obrigatória de caravelas a serviço da monarquia, agora é fundamental à logística do camarão. Toda manhã, barcos com capacidade para armazenar até cinco toneladas percorrem a orla recolhendo o pescado da madrugada. São os chamados compradores, funcionários das salgas que atuam como atravessadores no repasse do camarão a grandes atacadistas.
Este ano, eles estão pagando de R$ 8 a R$ 10 o quilo, valor que chega a custar oito vezes mais nas peixarias e nos supermercados de Porto Alegre.
— É um absurdo, né? Uma exploração isso aí que eles fazem. A trabalheira que dá pra pescar, depois pra fazer é só tirar a casca e deu — desabafa Márcia.
Desde o início de março, ela e a irmã ocupam um capão de mato no canto norte da ilha. Longe de tudo e de todos, nada ali é estranho para elas. Nascida em Santa Vitória do Palmar, Márcia foi morar na Feitoria aos oito anos de idade.
— Meu pai vivia acampado, inverno e verão. Dizia que a gente ia ficar rico pescando camarão — relembra, num sorriso constrangido. — Quando não dava camarão, pegava bagre, corvina, tainha. Pescou de tudo, só não ficou rico.
Márcia morou na ilha até os 14 anos, quando casou e mudou-se para Pelotas. No total, foram dois casamentos, ambos com pescadores, e quatro filhos, dos quais três vivem da pesca. Hoje solteira e com a prole criada, ela trabalha sozinha, desbravando no muque a imensidão da Lagoa dos Patos.
— Tenho orgulho de dizer que sou pescadora. Boto rede, tiro rede, viro motor, tudo eu faço. É sofrido, porque depende da força. A água passa para um lado, para o outro, tem que fazer força pra recolher rede, carregar gelo, caixa — assevera.
Enquanto Márcia fala, Liane prepara um café sob a lona emborrachada que protege o acampamento. Ao lado de uma pequena barraca, um fogareiro a gás garante o preparo das refeições e um isopor gela carne e bebidas. Uma placa solar estendida sobre taquaras fornece energia para as lâmpadas e os celulares, estrategicamente pendurados numa árvore no único ponto em que há sinal de internet para o contato com a família.
Nove anos mais nova que Márcia, Liane ainda mora em Santa Vitória do Palmar. Também solteira e vivendo da pesca, jamais havia compartilhado o barco com a irmã. Isso até o início do ano, quando avisou os três filhos, de 14 a 24 anos, que desta vez iria se aventurar em águas mais distantes:
— Quando tá dando pouco peixe, tu não sai porque tá dando pouco. Quando tá dando muito, não sai porque não quer perder. Mas esse ano eu disse que vinha. Tirei minhas redes d’água, guardei minha lancha e disse aos meus filhos: tô indo. Tão tudo grande e já sabem se cuidar.
Tem de fazer muita força
Não é fácil pescar camarão. Primeiro, é preciso torcer para chover pouco no início do verão, para que as águas do mar salguem a lagoa, enchendo o estuário de larvas do crustáceo. Após a abertura da safra, em 1º de fevereiro, cada pescador monta sua andaina, o conjunto de redes presas a estacas enterradas no chão. Chamadas de “avião” por causa do formato, as redes têm uma boca comprida, em média com 12 metros de largura. A parte superior fica sustentada por boias na crista da água e a inferior é amarrada a pedaços de chumbo para ir ao fundo. O corpo é afunilado, composto de armadilhas em formato de cone que impedem o camarão de sair.
Para evitar o acúmulo de algas e a captura de siris, que acabam cortando os fios, os pescadores levantam as redes durante o dia e baixam ao entardecer. À noite, baterias mantêm acesas dezenas de lâmpadas em cada andaina, emboscando o camarão pela atração luminosa. A coleta é feita antes do alvorecer, para que a luz do sol não mostre o caminho de saída da rede.
O camaroeiro vive à mercê do vento. Um sopro do sul, o chamado rebojo, é mau agouro. O ideal é o vento nordeste, que empurra as águas da lagoa em direção ao mar. Quando os dias passam e a pescaria não rende, muitos preferem trocar a andaina de lugar, operação que exige muito esforço físico, sobretudo para mulheres que não dispõem de uma bomba de ar.
— Tem pescador que se não tiver uma bombinha não crava uma andaina. Porque uma andaina são uns 10, 15 paus de quatro metros cada. Tem que medir tamanho do avião e da boca, a maioria nem faz. A gente cravou na beira, não deu camarão por umas quatro noites. Tiramos, esperamos uns dias porque era muito vento e trocamos de lugar. Tudo na mão — conta Liane.
Pescaria, também é sorte. Na mesma noite em que Márcia e Liane tiraram 440 quilos, perto dali Elisângela do Amaral Rodrigues pescou apenas 36. Natural de Rio Grande, filha e neta de pescadores, Elisângela passou a infância dentro de um barco. Aos 44 anos de idade, jamais ficou longe da água.
Desde setembro ela mora com o marido, Cléo, numa choupana na Ilha da Feitoria. Com dois quartos, cozinha, banheiro e despensa, todos os anos a pequena casa de madeira é reconstruída para a temporada. Enquanto os quatro filhos ficam em Pelotas, Elisângela passa oito meses à beira da lagoa, em busca do sustento da família.
À sombra de uma coronilha, ela cria porcos, galinhas e patos, mas, afeiçoada aos bichinhos, descarta qualquer abate e acaba levando carne da cidade para a alimentação. Já o pescado anda escasso. Até o final de março, Elisângela estimava ter capturado somente 300 quilos de camarão, uma miséria perto das 20 toneladas recolhidas no início dos anos 2000, em sua melhor performance nas redes. Para piorar, os motores de dois barcos enguiçaram e agora ela depende de carona de um sobrinho para os deslocamentos às andainas.
— Este ano tá difícil. Não tirei praticamente nada. Tem dias que dá mais, e a gente fica feliz, e dias que não dá nada, e a gente fica decepcionada. Não tenho a força de um homem, mas faço o que posso, da minha maneira — conforma-se.
Metalúrgico desempregado, Cléo está sempre em volta da mulher, ajudando na lida da casa, dos animais, revisando as andainas e limpando peixes. Mas detesta pescaria. À falta de traquejo, adicionou uma dose de desgosto desde que, em 2017, enfrentou sozinho um temporal no meio da lagoa. O vento sul o pegou de lado na travessia, levando ao fundo todas as redes, 50 quilos de camarão e um bote que trazia rebocado. Com o rosto enegrecido pelas gotas de óleo que saltavam do motor, Cléo só parou de acelerar quando atracou de volta em Pelotas.
— Eu gritava, rezava, chorava. Tinha certeza de que ia morrer. Tenho pena da Elisângela, porque ela é toda empolgada com a pesca e eu sou muito atrapalhado, não tenho sorte nem jeito — lamenta.
Machismo e invisibilidade na pesca
O desinteresse de Cléo pela pescaria não magoa nem desanima Elisângela. Fiel companheiro, mesmo a contragosto ele a acompanha sempre que pode e evita ao máximo que a mulher se aventure sozinha lagoa adentro. Sentada diante de casa, cerzindo as redes que ela mesma teceu, Elisângela reconhece a dedicação do marido e comenta o machismo reinante entre os pescadores:
— Ano passado, fiquei só no remo, sem motor, e minhas redes estavam há 10 noites e 10 dias na lagoa. Ninguém me ofereceu carona, e um vizinho ainda ficava dizendo: “Para que deixar atirado e não pescar?”. Quando consegui ir até lá, desci com água no pescoço e uma faquinha amarrada. As redes enterradas na areia, cheias de lixo, e eu puxando com pés, forcejando. Eu que fiz, eu que vou tirar. E tirei todas. Depois ele veio pegar água e perguntou como eu tinha tirado. “Aqui ó, no braço, sozinha. Aqui tem mulher, tá pensando o quê?”, disse pra ele, que saiu quietinho.
Elisângela, Márcia e Liane fazem parte de um contingente que cresce a cada dia nas praias brasileiras, mas permanece praticamente invisível nas estatísticas oficiais. Estimativas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) apontam a existência de 1 milhão de pescadores no Brasil, dos quais 45% seriam mulheres. Todavia, a participação feminina registrada em carteira profissional se reflete majoritariamente na retaguarda, com atuação maior na limpeza e no processamento do pescado do que na captura.
O apagão de dados é tema na mais recente auditoria do setor produzida pela Oceana Brasil, ONG que estuda a atividade e para a qual o “Brasil pesca no escuro”.
Essa realidade é facilmente perceptível na Z3, uma das maiores colônias de pescadores do Rio Grande do Sul e onde Márcia e Elisângela moram quando não estão manejando redes. Situada a 22 quilômetros do centro de Pelotas, a comunidade de ruas poeirentas às margens da Lagoa dos Patos foi fundada em 1921 por cerca de 40 famílias. Nos anos 1960, a população cresceu com o êxodo de imigrantes da região, de Santa Catarina e da própria Ilha da Feitoria.
Segundo a prefeitura, a Z3 tem 5 mil moradores, entre os quais 60 seriam mulheres atuando diretamente na pesca do camarão. Já o sindicato da categoria registra cerca de 300 pescadoras, enquanto a Colônia de Pescadores e Aquicultores Profissionais e Artesanais de Pelotas, a outra entidade de classe do município, contabiliza 143 mulheres entre os 410 sócios. O próprio subprefeito Luís Renato Fagundes ignora o tamanho da população local, sobretudo a feminina.
Na busca de dados mais confiáveis, a vice-presidente da colônia, Dulcineia dos Santos Vieira, recorreu ao mais prosaico dos instrumentos de investigação: saiu perguntando. Durante dois dias, Dulci percorreu de bicicleta as ruas estreitas da Z3, batendo de casa em casa. Diante de cada residência, anotava o número de moradores, com os respectivos nomes.
— Na minha rua nem precisei perguntar, pois conhecia todo mundo — diverte-se.
Conforme o "DataDulci", na Z3 moram 1,2 mil mulheres, 400 delas pescadoras. Aos 52 anos, filha do meio numa prole de cinco irmãos, por muito tempo Dulci sobreviveu do que caía na rede. Foi assim que criou duas filhas, construiu a própria casa e a casa da mãe. Hoje envolvida da manhã à noite no atendimento aos associados, ela já não sobe num barco há mais de ano. Suas redes, porém, estão estendidas na lagoa, aos cuidados de uma amiga com quem divide o camarão amealhado.
Assim como Dulci, quase todas as mulheres da Z3 têm a pesca enraizada em suas vidas. Márcia Chagas Carvalhal viu a primogênita aprender a caminhar em um bote e há 30 anos trabalha na peixaria da família. Por vezes, arrecada mais dinheiro vendendo bolinho de tainha do que o marido ganha pescando.
Perto dali, Mari Ângela Motta Lima, a Zuca, passa as tardes reciclando o principal objeto de trabalho da comunidade. Associada a oito amigas sob a marca Redeiras, ela transforma malhas de pesca desgastadas pelo uso em elegantes bolsas, mantas e xales. O artesanato do grupo,que também faz escamas de peixe virarem biojoias com prata e aço, é sucesso de vendas em lojas de seis Estados.
Em outro canto da vila, Jaudete de Mattos Rodrigues seduz a todos pelo aroma que sai da cozinha nos fundos de casa. Operando múltiplas frigideiras, produz iguarias irresistíveis com linguados, siris e camarões que os vizinhos tiram da lagoa. Filha do primeiro peixeiro local, ela faz do Delícias da Déti o mais concorrido restaurante da Z3, chegando a receber até 120 pessoas numa tarde de verão.
É raro cruzar por alguma via da Z3 em que não haja um ajuntamento de homens. Consertando barcos, manuseando redes, perscrutando a lagoa ou só jogando conversa fora, eles são onipresentes na paisagem. Findo o papo, deslocam-se de bicicleta, seguidos por guaipecas de olhar triste e passo torto.
Já as mulheres estão sempre apressadas. Surgem detrás das casas puxando os filhos pela mão, semblante severo carregando sacolas rua afora. O sorriso doce não vem fácil nem imerecido para quem tenta granjear confiança. Moldando o cotidiano ao sabor do que a água dá e tira, são elas que conduzem os rumos da comunidade. Agora também no leme do bote.
No mesmo dia em que pescaram 440 quilos de camarão, Márcia e Liane enfrentaram um ríspido temporal. O céu, até então límpido, foi tomado por nuvens escuras no início da noite, dando origem a uma tempestade elétrica que cobriu de raios a Lagoa dos Patos.
Na madrugada, a chuva veio acompanhada de ventania e granizo, sacudindo a barraca e impedindo o sono. A súbita mudança na direção dos ventos movimentou a correnteza e, na manhã seguinte, havia apenas quatro quilos de camarão na andaina, menos de 1% da colheita da véspera. Sem tempo para lamentação, as irmãs levantaram as redes, voltaram para terra e rumaram para Pelotas, onde comemoraram o aniversário de Márcia dançando a noite inteira no show de Maiara e Maraísa. Dois dias depois, estavam de volta à ilha.