O sexto dia de julgamento da Kiss, nesta segunda-feira (6), terminou com a afirmação de Márcio André de Jesus dos Santos, percussionista da banda Gurizada Fandangueira e sobrevivente do incêndio na boate, de que o uso de artefatos pirotécnicos era de conhecimento do sócio da casa noturna Elissandro Spohr, o Kiko. Outras três testemunhas também prestaram depoimento, entre elas a esposa de Kiko e sobrevivente, Nathália Daronch, que ressaltou que a espuma antirruído que pegou fogo foi indicada por um engenheiro. A sessão, no Foro Central, em Porto Alegre, também teve discussões sobre a lotação da boate Kiss na madrugada do incêndio.
Durante seu depoimento, o último do dia, Márcio, que é irmão do réu Marcelo de Jesus dos Santos, acusado de disparar o artefato que causou o incêndio, afirmou que, sempre que permitido, a banda colocava fogos pirotécnicos (chamados sputnik) ao lado do palco. Dois disparavam com a primeira música. Depois de cinco músicas, faziam nova pirotecnia. Foi um desses fogos de artifício que causou o incêndio da danceteria, matando 242 pessoas, em 27 de janeiro de 2013.
Ele relatou todo o início do incêndio. Recordou que tudo começou quando foram tocar um chamamé. Luciano Bonilha Leão (produtor da banda, que também é réu) montou o sputnik, e o vocalista Marcelo de Jesus dos Santos se programou para disparar o artefato. Quando disparou, o teto da boate pegou fogo, “soube depois que era a espuma”. A banda imediatamente parou de tocar.
— Um rapaz pegou um extintor, pulou pelo balcão do bar e alcançou para o Marcelo. Não funcionou. Outra pessoa tentou usar. Também não funcionou. Tive uma sensação de impotência. Aí um dos rapazes disse: “Vamos sair, não tem mais o que fazer” — relatou.
O magistrado perguntou se, caso o extintor tivesse funcionado, seria possível evitar a propagação do fogo. Márcio afirmou que sim, com um extintor grande, conforme avalia a partir de sua experiência num curso de prevenção de incêndio.
Espuma antirruído foi indicada por engenheiro, diz esposa de Kiko
Um dos depoimentos mais esperados deste início de semana era o de Nathália Daronch, esposa de Elissandro Spohr, o Kiko — um dos quatro réus do caso. Ela falou na tarde de segunda-feira, confirmando que estava na danceteria na noite em que houve o incêndio e foi hospitalizada por intoxicação.
Nathália garantiu que Kiko sempre colocou extintores na danceteria e não lembra de locais que não tivessem esse equipamento. A esposa do empresário assegurou ainda que a espuma antirruído (que queimou durante o incêndio) foi indicada por um engenheiro e colocada por Kiko mediante orientação desse profissional. A reforma para conter a propagação do som custou cerca de R$ 250 mil.
A afirmativa de Nathália contraria o que mostra o projeto de engenharia para isolamento acústico da boate, que não menciona a necessidade de espuma, conforme mostrou reportagem de GZH.
A respeito da relação com o marido, ela disse que Kiko é um homem de família e um pai exemplar. O casal tem duas filhas, uma de oito anos e outra de cinco. Nathália chorou ao falar a respeito.
— Quando saímos do hotel para o júri, as meninas me disseram: “Mãe, traz o pai de volta para casa! Ele não queria matar as pessoas”.
Ocupação da casa
Na primeira parte do sexto dia de julgamento, duas testemunhas da defesa de Elissandro Spohr foram ouvidas e passaram informações sobre a quantidade de público na Kiss no dia da tragédia.
O juiz Orlando Faccini Neto indagou Stenio Rodrigues Fernandes, empresário, ex-funcionário da boate Kiss e ex-promotor de festas da casa, citando que, em depoimento à Polícia Civil à época do inquérito, a testemunha teria referido a impressão de 862 ingressos. O depoente trabalhava com os convites antecipados, negociados com turmas de formandos universitários.
— Nunca tive certeza de quantos (ingressos) foram feitos — disse.
O advogado Jader Marques, que atua em defesa de Spohr, voltou ao tema da quantidade de pessoas que estavam na Kiss na noite do incêndio.
A tragédia deixou 242 mortos e 636 feridos, conforme consta na denúncia do caso, o que leva à soma de 878 vítimas. A lotação da casa tem sido tema recorrente durante o júri.
Fernandes disse ter havido três reformas na boate, na tentativa de melhorar a acústica e reduzir ruídos. Comentou que a banda Gurizada Fandangueira foi contratada e pedido das turmas de faculdade e disse já ter produzido outros do grupo na boate e em lugares diferentes. Afirmou que, na Kiss, "nunca tinha visto show pirotécnico".
A defesa de Mauro Hoffmann questionou o fato de Fernandes ser apontado como vítima no processo, sendo que já teria saído da boate no momento em que houve o incêndio. O fato levantou longo debate sobre número de ferido. Enquanto MP, sustenta que o número é até maior, as defesas de Spohr e Hoffmann afirmam que é menor.
— Contenham-se, parece uma disputa de quem sabe mais — disse juiz Orlando.
O segundo depoimento do dia foi o de Willian Machado, sobrinho de Spohr e sobrevivente do incêndio. Afirmou que naquela noite estava em uma área VIP, de onde saiu ao perceber o início do incêndio. Disse ter presenciado seu tio, gerente da Kiss, no início do sinistro, gritando:
— Sai que é fogo.
Ele confirmou que horas após a tragédia contatou o promotor de festas Stenio Rodrigues Fernandes — ouvido antes dele no julgamento — para requisitar os acertos de ingressos e entradas que eventualmente não tinham sido vendidas.
— Eu liguei para o Stenio porque eu precisava comprovar que não tinha superlotação — afirmou.
Machado assegurou que “em dia de festa, nunca teve apresentação com artefato” pirotécnico. A promotora Lúcia Callegari resolveu encerrar sua rodada de perguntas no momento em que, na interpretação dela, Machado teria reconhecido que fogos em ambientes fechados podem representar risco às pessoas.
Ao responder o advogado Jader Marques, afirmou que as espumas “sempre incomodaram Kiko pela estética”. Comentou que, devido aos problemas com vazamento de ruído, teriam sido dadas “duas opções para o Kiko”. Uma seria cobrir o teto da boate com espuma e a outra era instalar gesso. Narrou que seu tio optou pelo gesso, mais caro. Afirmou que, depois da obra de isolamento acústico, quando a Kiss permanecia enfrentando problemas com ruídos, os engenheiros teriam dito a Spohr que não seria resolvido o problema do som sem as espumas.
— Se tivessem pedido para ele fazer uma passagem subterrânea, ele teria feito. Ele nunca iria se negar a nada — declarou.
Narrou também o primeiro contato direto que teve com Spohr no decorrer da tragédia, dizendo que ele socorria frequentadores da Kiss.
— No que me direcionei ao Kiko, ele vinha com uma pessoa (vítima) no colo. E ele queria voltar para dentro da boate. Ele estava em desespero para voltar — disse.