No sexto dia do júri da boate Kiss, a testemunha Stenio Rodrigues Fernandes, empresário e ex-promotor de festas da casa, apresentou informações diversas sobre a quantidade de público no dia da tragédia em Santa Maria.
Pouco depois das 9h desta segunda-feira (6), o juiz Orlando Faccini Neto, presidente do júri, fez questões que tomavam por base o depoimento de Fernandes à Polícia Civil à época do inquérito. O magistrado trouxe uma indagação citando que, naquela ocasião, a testemunha teria referido a impressão de 862 ingressos. O depoente trabalhava com os convites antecipados, negociados com turmas de formandos universitários.
— Não me recordo com exatidão do número. (...) Nunca tive certeza de quantos (ingressos) foram feitos — disse.
Afora os antecipados, havia modalidades como nome na lista e ingresso na hora, sem nenhum meio de convite prévio para entrar na casa.
Encerradas as perguntas do magistrado, quem passou a questionar foi a defesa de Elissandro Spohr, sócio da Kiss, que arrolou a testemunha. O advogado Jader Marques voltou ao tema da quantidade de pessoas que estavam na Kiss na noite de 27 de janeiro de 2013.
— Pela base de ingressos vendidos, não teria mais do que 800 pessoas — afirmou Fernandes.
A tragédia da boate Kiss deixou 242 mortos e 636 feridos. Isso soma 878 vítimas. A lotação da casa tem sido tema recorrente durante o júri e praticamente todas as testemunhas ou sobreviventes são indagados a respeito do público médio que frequentava o estabelecimento.
Inicialmente, Fernandes era testemunha arrolada pelo Ministério Público (MP), mas o órgão abriu mão da participação dele após um acordo produzido na semana passada para acelerar o júri, em que cada parte dispensou um testemunho. A partir disso, a defesa de Spohr se desfez de outro nome para assumir a indicação pelo depoimento do ex-promotor de eventos.
A testemunha ainda disse, perguntado pela defesa, que teria sofrido "pressão psicológica" no depoimento à Polícia Civil. Ele afirmou também que Spohr, na tentativa de resolver problemas com uma vizinha que reclamava do barulho da boate, chegou a fazer uma reforma na casa dela para ampliar o isolamento. E elogiou o ambiente da Kiss.
— Tinha a melhor estrutura da cidade. Era a casa mais bonita — afirmou.
Sobre a atuação na Kiss, que envolvia divulgação de festas e negociação de ingressos antecipados, diz que tratava "sempre com o Kiko (Spohr)". Sobre o outro sócio da casa e também réu, Mauro Hoffmann, comentou não ter relação próxima.
— Cheguei a ver o Mauro esporadicamente. Às vezes pela noite, às vezes pela tarde. Poucas vezes lembro de ter conversado com ele. A gente tinha conhecimento que ele era sócio. (...) Que me recorde, nunca me reportei a ele nem recebi qualquer tipo de ordem — declarou.
Fernandes comentou ter produzido outros shows da banda Gurizada Fandangueira na boate Kiss e em lugares diferentes. Afirmou que, na Kiss, "nunca tinha visto show pirotécnico". Ainda contou que, cerca de uma semana antes da tragédia, presenciou uma apresentação do conjunto musical no centro de eventos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Narrou que, na ocasião, foram usados fogos e que ele chegou a afastar promotores de eventos da frente do palco porque estava "chuviscando" fagulhas.
— Foi a única oportunidade em que vi a banda fazer isso — disse.
O depoimento de Fernandes durou pouco mais de três horas. O MP voltou ao tema da lotação da casa no dia da tragédia. A promotora Lúcia Callegari resgatou o depoimento de Fernandes à Polícia Civil, onde ele teria manifestado que a Kiss trabalhava com base de público de 1,2 mil pessoas. A informação contrasta com o que Fernandes disse no depoimento desta segunda-feira, quando estimou que, no dia 27 de janeiro de 2013, "não teria mais do que 800 pessoas" no local.
— Eu fui muito pressionado em todo esse depoimento — respondeu.
Confrontado com itens do depoimento à polícia, alguns deles divergentes com as manifestações no júri, disse que houve "pressão psicológica".
— A todo momento na polícia eles diziam "fala o que tu sabe, não entra nessa, os caras vão apodrecer na cadeia" — declarou, apontando o uso de tom "enérgico".
Ele disse que, apesar dessa suposta "pressão", não buscou providência contra policiais que o teriam tratado mal nem apresentou representação à corregedoria. Sem citar o nome, disse que as supostas pressões teriam partido de um escrivão.
O debate sobre números causou uma interrupção no depoimento de Fernandes. As defesas de Spohr e Hoffmann apresentaram a análise de que o número de 636 feridos do sinistro — que consta na denúncia do Ministério Público — seria equivocado. Os advogados usaram como gancho para essa afirmação o fato de o depoente ter sido incluído na lista de vítimas, apesar de ter deixado a Kiss antes do horário do incêndio para se deslocar até Caçapava do Sul, onde tinha outro compromisso.
Em resposta, a promotora Lúcia citou outros casos de vítimas que supostamente não teriam sido computados e disse que o número real era superior aos 636 que constam no processo da boate.
Houve acirramento de ânimos, e o juiz Orlando interferiu. Avaliou que o debate tinha legitimidade, mas que seria inviável discutir uma a uma as peculiaridades dos 636 sobreviventes. Dando fim à querela, afirmou que, embora esse número de feridos baseie a imputação de tentativas de homicídio na acusação, ele não será levado em consideração para a formulação de quesitos aos jurados. Os quesitos são as perguntas que o magistrado fará aos sete jurados na sala secreta para determinar se os quatro réus são culpados ou não pelos crimes, com apontamento de dolo eventual, quando se assume o risco de matar.