A arquiteta Fernanda Buriol Londero tinha 24 anos quando sobreviveu ao incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, na madrugada de janeiro de 2013. Era daquelas jovens que saía pouco à noite. Mais reservada, gostava de ficar em casa com a família. A convite de amigos, no entanto, decidiu ir à boate naquela fatídica noite.
Os três parceiros de balada, muito próximos a ela, morreram na tragédia. Ela sobreviveu. Nunca superou o trauma psicológico de ver corpos espalhados pelo chão enquanto tentava escapar, nem as sequelas causadas por aspirar fumaça tóxica da estrutura que queimou.
Fernanda estava na lista de testemunhas sobreviventes para depor no júri do processo que apura as responsabilidades pela tragédia, com data marcada para começar em 1º de dezembro, em Porto Alegre. Estava preocupada com tamanha responsabilidade, mas convencida de que precisava fazer a sua parte e esclarecer o que presenciou naquele dia, quase nove anos depois.
Não poderá. A arquiteta morreu no dia 23 de outubro, aos 33 anos. A causa foi uma embolia pulmonar por complicações após uma cirurgia de vesícula. O Ministério Público, que havia feito a indicação, vai substituir a testemunha.
GZH conversou com a mãe de Fernanda, Ana Maria Buriol Londero, 65 anos, que estava acompanhada do pai da jovem, Antoninho Ivo Londero, 70 anos, bancário aposentado. Conforme a professora aposentada, a filha não gostava de falar sobre o incêndio, mas contou tudo o que presenciou aos pais e amigos. Lembra que ela disse que escapou da morte porque atalhou pela cozinha do prédio em chamas.
— Quando se apagaram as luzes da boate, ela disse que se guiou pelas luzes dos refrigeradores e foi em direção ao bar, quando viu a porta de saída. Chegou a passar na frente dos banheiros. Ela passou por cima de cadáveres, pessoas desmaiadas, foi pisoteada, presenciou tudo. Ela foi retirada de dentro e desmaiou do lado de fora — relata Ana, ao lembrar que a filha dizia que a boate era um labirinto.
Fernanda se formou em 4 de janeiro de 2013. As fotos da sua formatura ficaram prontas depois da tragédia. Ela nunca quis ver. Os três amigos que morreram estavam na festa de formatura.
— Que se faça justiça. Só que tem muita gente que deveria estar como réu e não está. Bombeiros, prefeito, fiscais que deveriam estar presentes — desabafa a professora aposentada.
A arquiteta foi levada ao hospital naquela madrugada de 27 de janeiro de 2013, mas ficou pouco tempo. Logo foi liberada. Precisou voltar por se sentir mal em razão de ter aspirado muita fumaça, quando ficou 10 dias internada. As sequelas pulmonares permaneceram ao longo dos anos, com necessidade de tratamento.
— Ela ficou com sequelas psicológicas, psiquiátricas e pulmonares. Deram alta, mas seguiu com problemas plumares. Ela sentia falta de ar quando caminhava ligeiro — lembra a mãe.
Conforme Ana, a filha acabou morrendo em 23 de outubro por uma embolia pulmonar. A morte ocorreu dias depois de uma cirurgia de vesícula.
— Ela tinha sequelas no pulmão. Mas a gente não pode afirmar que essas sequelas contribuíram para a morte da Fernanda — pondera Ana.
A arquiteta morava em Salto do Jacuí desde janeiro de 2020, quando foi chamada para assumir um cargo na prefeitura após passar em concurso público. Antes disso, vivia em Santa Maria, na casa dos pais.
— Depois do incêndio, a Fernanda sempre teve trauma de entrar em locais fechados. Em restaurantes, sempre queria ficar na porta. Antes de fazer a cirurgia, ela foi num bar e acenderam fogos. Ela quase teve um troço. Passados quase 10 anos, não tinha superado o trauma — recorda.
Segundo a mãe, a arquiteta sempre foi uma pessoa alegre e divertida. Diz que por onde passava deixava marcas boas. Além de muitos amigos, Fernanda tinha amor aos animais. Adotou a cachorrinha Lola, que cuidava como uma filha. Ela e o companheiro, um professor de História aposentado, estavam felizes porque tinham acabado de comprar um carro.
— Ela estava na minha casa quando recebeu o comunicado de que seria testemunha. Chorou muito porque teria de enfrentar os réus. Estava muito preocupada também porque teria de ficar afastada do companheiro e da Lola — conta a mãe.
Além dos pais, Fernanda deixa o irmão, Edurado Buriol Londero, 40 anos, o companheiro, Cassiano Ricardo do Nascimento, 35 anos, e a cachorrinha Lola, que era considerada uma filha pela arquiteta.