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A ação civil pública que determinou a vinda da Força Nacional de Segurança Pública à maior reserva indígena do Rio Grande do Sul é de 2018, mas tem raízes bem mais antigas. Grande parte dos 196 arrendatários de terras já identificados no processo — e que estariam plantando de forma ilegal — fazem isso há três décadas.
GZH acessou a ação civil pública. Ela é continuidade de um inquérito criminal aberto pela Polícia Federal em 1991, que identificou 168 arrendatários de terras na reserva da Guarita, no norte do RS. Todos brancos, muitos deles grandes produtores de soja, trigo e milho em Miraguaí, Redentora e Tenente Portela.
Conforme fontes consultadas pela reportagem, grande parte deles continua plantando na área indígena. O inquérito foi arquivado, mas os nomes e fatos nele listados serviram de guia para a ação civil pública atual.
Alguns dos dados que permanecem atuais, segundo investigadores e proprietários de terra ouvidos pela reportagem:
- Dos 23 mil hectares da reserva, 15 mil são agriculturáveis e 12 mil hectares estariam na mão de arrendatários brancos
- Ouvido pela PF, o cacique da época, Samuel Claudino, confirmou que cada família caingangue recebia quatro sacas de soja por hectare. Tudo supervisionado pelo cacique, "para que o índio não seja logrado". Que as lideranças (ele e os majores e capitães da área indígena) recebiam um saco por contrato. O cacique falou também que esse costume vem desde antes da existência da Funai, do tempo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Que os arrendamentos existem para subsistência dos indígenas e, sem eles e sem recursos para as lavouras, não há como sobreviver
- O cacique ganha em dinheiro pelo arrendamento o equivalente três sacas por hectare, outras três vão para o índio "dono" do lote
- Ao serem interrogados, eles declararam que sempre plantaram sem qualquer problema. Faziam contratos diversos com os índios. Por vezes, apenas um recibo. Em outras, um contrato de gaveta num cartório. Alegaram que a Funai sempre tolerou isso
O representante dos arrendatários na época do inquérito policial, de uma família tradicional de Redentora, declarou que arrendava terras dos caingangues desde 1962. E que antes a própria Funai intermediava. Depois, o governo federal vetou, mas os índios continuaram fazendo. Os contratos eram redigidos em três vias e firmados por índios e brancos.
As listas com nomes de produtores da área indígena foram entregues pelo cacique e pelos agricultores brancos à PF.
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O que mudou nesses 30 anos? Nada, informam tanto autoridades quanto mandatários da região. A reportagem confirmou, confidencialmente, que a maioria dos 168 listados no inquérito dos anos 1990 também faz parte da lista dos atuais 196 da Funai — em alguns casos, seus descendentes. São plantadores tradicionais na região. O que a Funai, a Polícia Federal, a Receita Federal e a Força Nacional de Segurança buscam agora é confirmar e formalizar isso em processo judicial.
A intermediação de arrendamentos por parte de servidores da Funai foi confirmada. Em abril de 2012, a Justiça condenou um funcionário do posto da Funai na Guarita à pena de demissão, suspensão de direitos políticos por cinco anos, proibiu-o de contratar com o Poder Público e multou-o em R$ 10 mil. Conforme a sentença, ele emitiu mais de 50 autorizações para que não-índios adentrassem na reserva para prestar serviços — na verdade, pequenos arrendamentos agrícolas. Além disso, intermediou financiamentos bancários por parte de indígenas, função que não lhe caberia.
GZH falou com um advogado conhecido de Redentora. Ele se mostra espantado é com a diferença de tratamento recebida pelos caingangues. Quando os brancos arrendam terra para outros brancos, dentro da lei, costumam cobrar 20 sacas por hectare, adiantados, dos grandes produtores. Já os índios arrendam suas terras por seis sacas ao hectare (metade para as lideranças, metade para o morador do lote). Essa mesma desproporção está confirmada nos depoimentos policiais lidos pela reportagem.
— Isso acontece porque o arrendamento de terra indígena é ilegal e os caingangues têm de se contentar com o valor que lhes oferecem, já que é irregular. Pior é que às vezes nem recebem, ou ganham um carro velho, uma moto usada, cheia de multas. Isso é histórico e explica a miséria de grande parte das aldeias — lamenta o advogado, que tem vários amigos indígenas.
Tomando-se por base os 12 mil hectares que serão plantados e o valor da saca de soja na região, no mercado futuro (R$ 158), os caingangues podem receber R$ 12 milhões com os arrendamentos ilegais? Sem contar as safras de trigo e milho, que estão em época de colheita. São valores que, muitas vezes, explicam os frequentes conflitos entre lideranças indígenas da Guarita e outras reservas.