Fotos de grupos de crianças e de adolescentes reunidos em atividades ligadas à igreja, postadas em uma rede social, deveriam promover o reencontro de amigos e boas recordações. Para uma mulher de 53 anos, moradora da zona sul de Porto Alegre, no entanto, foi o gatilho para uma crise nervosa e para o ressurgimento de dores guardadas por mais de 40 anos.
Ao ver imagens do padre Antônio Gasparini, que atuou por 10 anos na Paróquia Nossa Senhora da Misericórdia, no bairro Restinga, ela decidiu revelar que foi abusada por ele entre os seis e os 13 anos de idade. A partir da denúncia feita à Arquidiocese de Porto Alegre, o padre, que tem 86 anos, foi alvo de um processo canônico, concluído em junho.
Este foi o primeiro caso encaminhado à apuração por membros da Comissão Arquidiocesana Especial de Tutela de Criança, Adolescente e Pessoa Vulnerável da Arquidiocese de Porto Alegre. Apesar de ter surgido em meados de setembro, antes do lançamento oficial da comissão, que ocorreu em fevereiro, a denúncia chegou até a arquidiocese.
A apuração foi feita pelo Superior Geral da Congregação Pobres Servos da Divina Providência, que tem sede em Verona, na Itália, e enviada à Congregação para Doutrina da Fé, no Vaticano, responsável pelo tema do abuso sexual na igreja. As denúncias foram tidas como verdadeiras e houve determinação para que Gasparini, devido à idade avançada, receba como punição uma penitência.
O padre, que atuou por 45 anos no Brasil, voltou para a Itália, seu país de origem, em 2017 . Adoentado, vive em uma casa de idosos e, portanto, já está afastado das atividades religiosas. Um dos pedidos feitos pela mulher que contou ter sofrido os abusos foi de que o caso chegasse a Gasparini, que ele soubesse o que estava sendo contado. E isso ocorreu.
— Ele foi notificado. Ficou chateado. Disse que vai rezar por ela e oferecer sacrifício — disse Gilberto Bertolini, provincial no Brasil da Congregação Pobres Servos da Divina Providência, à qual Gasparini pertence.
A vítima, que pede para não ser identificada, espera mais:
— Quero que ele comece a pagar em vida o mal que fez para mim e o para outras meninas. É muito dolorido e difícil falar. Ele abria um livro com imagens de partes íntimas e começava a conversar. Quando aparecia a parte íntima feminina, ele me tocava no local. Por várias vezes. Acontecia no escritório dele, com a porta fechada. Nunca contei para ninguém. Só no ano passado falei para minha mãe. Ela ficou chocada, mas achou que eu não deveria mexer no assunto. Ele é um monstro, deixou sequelas na minha vida.
Quero que ele comece a pagar em vida o mal que fez para mim e o para outras meninas.
DENUNCIANTE
sobre o padre Gasparini
Questionado durante a investigação na Itália, Gasparini alegou que "naquele tempo era comum tratar de educação sexual com crianças".
Conforme Bertolini, uma medida imediata em casos assim seria afastar o padre das atividades, mas ele já não atua mais em contato com fiéis.
Segundo a congregação, em sua passagem pela paróquia da Restinga (1973-1983), Gasparini não atuava diretamente em atividades com crianças, ficando restrito à paróquia. Mas, na igreja, ele criou grupos de liturgia para crianças e adolescentes. Segundo a denunciante, ele até organizava passeios.
A partir dos 13 anos, a mulher disse que passou a se defender e a escapar das supostas investidas do padre. Depois, ele saiu da igreja e o assunto ficou enterrado. Gasparini foi trabalhar na Bahia, onde ficou por 12 anos e teve até um instituto batizado com seu nome. Mesmo trabalhando fora, costumava visitar a comunidade na Restinga.
— Ele aparecia, no verão. Apareceu quando eu ia casar e fez questão de celebrar o casamento. Eu não tinha o que fazer, nunca havia contado nada para ninguém, não tinha como justificar que não queria que ele fizesse o meu casamento. E ele fez — lamenta a mulher.
A decisão de revelar os fatos, passados mais de 40 anos, ocorreu quando a vítima descobriu que, mesmo depois de tanto tempo, não estava com o assunto resolvido. Bastou ver as fotos compartilhadas em redes sociais, no ano passado, na Restinga, para ter um surto, precisar consultar com psiquiatra e ficar sob medicação. Ela acredita que agora avançou para atenuar a dor que carrega:
— Me deu um surto ao me ver na foto, pequena, frágil, ao lado de um monstro. Ele tem que pagar. Não pode ficar impune. Como pode existir um instituto com o nome dele (na Bahia). Isso é um horror. Ele não é essa pessoa (boa). Agora, me dá um pouco de paz ao saber que essa denúncia chegou até ele.
Na tarde desta quinta-feira, a Congregação Pobres Servos da Divina Providência informou sobre a penitência que será aplicada a Gasparini:
"Pe. Antônio Gasparini, como repetidamente foi expresso por ele, oferece seus próprios sofrimentos internos e físicos para as vítimas. Que ele trabalhe com oração e com obras de piedade (orações, oferecimento do próprio sofrimento da doença) em nome da vítima. "
O que é penitência:
Uma penitência canônica é algo exterior, é uma obra de misericórdia, um conjunto de fatores de ordem espiritual, mas também de ordem material reparativa. Por exemplo: dar comida aos pobres, trabalhar em uma obra social fazendo serviços mais humildes sem ganhar salário — na cozinha de um albergue ou na lavanderia ou na limpeza —, ir a pé de um lugar ao outro, tipo uma peregrinação a um santuário e ao longo do caminho ir rezando pela pessoa que foi machucada, trabalhar em um cemitério cuidando do sepultamento de indigentes, ajudar em presídios ou hospitais. E junto a essas ações pode ser agregado o jejum e a redução de horas de sono, por exemplo.
Como denunciar:
- E-mail: tutela@arquipoa.com
- Telefone: (51) 99733-4957 (ligações ou mensagens de WhatsApp). Funciona entre 7h e 19h.
- Denúncias também podem ser feitas em outros órgãos, como diretamente na Polícia Civil ou no Ministério Público.