Desvios de financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) no Rio Grande do Sul fizeram 5.744 vítimas no Vale do Rio Pardo. É o que aponta investigação feita pela Polícia Federal (PF). O prejuízo foi causado sobretudo a agricultores dessa que é a região que mais produz fumo no Brasil. Na segunda-feira (4), a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) foi aceita e 14 envolvidos viraram réus na 7ª Vara da Justiça Federal, em Porto Alegre (especializada em lavagem de dinheiro).
A investigação começou em 2012, quando um agricultor que procurou a delegacia da PF em Santa Cruz para relatar que estava sendo cobrado, pelo Banco do Brasil, por empréstimos que jamais havia contraído. As primeiras checagens dos policiais, comandados pelo delegado Luciano Flores de Lima, constataram que recursos captados via financiamentos do Pronaf eram movimentados de contas bancárias de fumicultores por pessoas ligadas à Associação Santacruzense de Pequenos Agricultores Camponeses (Aspac). A entidade é originária do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).
O golpe teria ocorrido com conhecimento de funcionários do Banco do Brasil e, por isso, oito bancários viraram réus. Em muitos casos eram contratados dois financiamentos em nome do agricultor, mas ele apenas era informado de um contrato e ignorava o outro. Dos R$ 79 milhões emprestados a agricultores da região mediante o Pronaf, os desvios teriam comprometido R$ 9,9 milhões.
Os acusados respondem por crimes contra o sistema financeiro (gestão fraudulenta de instituição financeira e violação de sigilo) e, no caso específico dos ligados à Aspac, também por associação criminosa.
A investigação só foi concluída pela PF em 2015 e desde então estava no MPF, que alegou complexidade do tema para a demora de quatro anos na análise de quase 10 mil páginas de documentos. A denúncia contra os 14 envolvidos foi protocolada pelo procurador da República José Alexandre Pinto Nunes e aceita pelo juiz Guilherme Beltrame, da 7ª Vara Federal.
O caso está em segredo de Justiça, mas GaúchaZH conseguiu acesso a alguns detalhes. Os acusados são todos os que tinham sido indiciados pela PF. Dois dos réus são ex-vereadores do PT. O mais conhecido é Wilson Rabuske, que foi vereador em Santa Cruz do Sul entre 2009 e 2016, além de ex-coordenador do MPA no Vale do Rio Pardo. Ele é apontado na denúncia como "líder da organização criminosa", que "exercia hierarquia sobre todos os demais investigados".
O outro ex-vereador responsabilizado pelos desvios é Maikel Raenke, de Sinimbu, também ligado na época ao MPA. Quatro pessoas ligadas à Aspac foram acusadas, além de alguns familiares delas e dos oito servidores do Banco do Brasil. Dos bancários, quatro eram gerentes-gerais. Alguns foram demitidos do BB após auditoria confirmar a existência das irregularidades.
Como teriam ocorrido os desvios, segundo o MPF
1. A Associação Santacruzense de Pequenos Agricultores Camponeses (Aspac) orientava os plantadores de fumo sobre como conseguir empréstimos do Pronaf. Os agricultores, na hora dos contratos, assinavam autorizações para que os financiamentos fossem transferidos para contas bancárias da Aspac. Muitos desses documentos eram assinados em branco e os formulários eram preenchidos depois, por outras pessoas ligadas à entidade.
2. Funcionários da Aspac em Santa Cruz e Sinimbu preparavam os contratos, colhiam assinaturas dos agricultores, preenchiam a documentação e a levavam ao banco. Eles tinham encontros frequentes com servidores do Banco do Brasil, que inclusive mantinha um posto bancário dentro na sede da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), em Santa Cruz do Sul. Nesse local, a Aspac tinha uma mesa exclusiva para intermediar obtenção dos financiamentos.
3. Quando o Banco do Brasil liberava os financiamentos, o dinheiro ou parte dele era repassado para contas da Aspac. Em alguns casos, a verba sequer era devolvida aos agricultores. A suspeita é de que parte do dinheiro dos financiamentos era canalizada para despesas da entidade e também para campanhas políticas de simpatizantes do MPA (a investigação encontrou indícios disso).
4. A fraude só foi descoberta porque ocorreram alguns eventos climáticos que geraram prejuízo às lavouras e o governo federal demorou em rolar as dívidas, que começaram a ser cobradas pela cúpula do banco. Assim, muitos agricultores descobriram débitos em seus nomes, inclusive superiores ao seu patrimônio pessoal.
Quem são os réus
- Núcleo MPA/Aspac
Respondem por gestão fraudulenta do sistema financeiro, violação de sigilo e associação para o crime:
1. Wilson Luiz Rabuske
Ex-vereador pelo PT em Santa Cruz e ex-coordenador do MPA na região, é apontado como mentor dos empréstimos duplos em nome de terceiros.
2. Vera Lucia Lehmenn Rabuske
Esposa de Wilson Rabuske, auxiliava ele na coordenação do escritório do MPA e da Aspac.
3. Perci Roberto Schuster
Ex-presidente da Aspac e ex-assessor de Wilson Rabuske na Câmara Municipal de Santa Cruz, teria ajudado Rabuske a convencer agricultores a buscar empréstimos orientados pela Aspac.
4. Maikel Ismael Raenke
Ex-vereador do PT em Sinimbu, era ligado ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Teria ajudado nos crimes ao intermediar os financiamentos do BB.
5. Marlise Teresinha Gularte
Ligada ao MPA em Sinimbu, substituiu Maikel Raenke quando esse virou de vereador. Ela teria ajudado a redigir os contratos e intermediar financiamentos junto a servidores do BB.
6. Vania Emilia Müller
Trabalhou no MPA e na Aspac colhendo autorizações de transferência de recursos das contas de agricultores e intermediando contato com servidores do BB para liberar financiamentos. Viabilizava também retorno de parte dos recursos para contas da Aspac.
- Núcleo Banco do Brasil
Todos respondem por gestão fraudulenta ou temerária do sistema financeiro:
7. João Carlos Hentschke
Foi gerente-geral do BB em Santa Cruz do Sul entre agosto de 2007 e fevereiro/2011. Teria autorizado empréstimos.
8. Wilson Luiz Bisognin
Foi gerente-geral do BB em Santa Cruz do Sul entre março de 2011 e julho de 2012.
9. Vladimir Barroso
Foi gerente-geral do BB em Sinimbu de julho de 2007 a fevereiro de 2011 e em Santa Cruz do Sul entre julho de 2012 e junho de 2014.
10. Juliano Chedid Matte
Foi gerente-geral do BB em Sinimbu de fevereiro de 2011 a janeiro de 2013.
11. Clóvis Kegler
Funcionário do BB em Santa Cruz do Sul.
12. Sergio Augusto Teixeira Silveira
Gerente de relacionamento do BB em Santa Cruz do Sul.
13. Rafael Spalding Cavalli
Gerente de relacionamento do BB em Sinimbu.
14. Fabiana Beatriz Palhano
Funcionária do BB em Sinimbu.
Contraponto
O que diz Luiz Pedro Swarovsky, advogado de Wilson Rabuske, Vera Lehmenn Rabuske (mulher de Wilson), Perci Schuster (ex assessor parlamentar do Wilson) e Marlise Terezinha Gularte:
"Meu cliente sempre agiu de forma honesta e correta. Muitos agricultores efetivamente tomaram empréstimos além da capacidade financeira e não devolveram, tem um com mais de R$ 150 mil de dívidas. Outros usaram o dinheiro para fins diferentes do contratado, como compra de tratores. Como vai culpar a Aspac por isso? A Aspac apenas ajudava a intermediar os contratos, mediante cobrança de uma pequena taxa, mas não fez fraude."
O que diz o ex-vereador Maikel Raenke:
Ele não foi encontrado por GaúchaZH. Na fase de inquérito policial ele se disse surpreso com o teor das investigações, afirmou que jamais cometeu qualquer irregularidade e disse que apenas ajudou os agricultores a obterem empréstimos.
O que diz Daniel Tonetto, advogado de Clóvis Kegler:
"O Clóvis não tinha poder de gestão. Era um excelente funcionário, que sempre agiu dentro das regras."
O que diz Marcos Morsch, advogado de Fabiana Palhano, João Carlos Renshke, Sérgio Augusto Teixeira Silveira e Vladimir Barroso:
"Com relação à Fabiana é uma defesa tranquila. Como simples escriturária, ela apenas redigia contratos, sem ter poder de decisão. Os outros três eram gerentes e cumpriam estritamente o regulamento do Banco do Brasil, cujo sistema avisava da capacidade financeira de cada agricultor. Mesmo que quisessem, não poderiam liberar empréstimos indevidos. Se houve fraude, só se aconteceu dentro do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)."
O que diz Norberto Flach, advogado de Juliano Chedid Matte:
"Estranho a demora na denúncia, talvez tenha faltado convicção ao Ministério Público. Quanto ao cliente, ele seguiu as regras do banco, que aprovava os empréstimos. Eram práticas conhecidas e confirmadas. A clientela era de confiança e a Aspac atestava que os agricultores iriam pagar. Tudo estava bem até começar a inadimplência. Aí estourou no lado mais fraco, os bancários. Não houve dolo."
O que diz Wilson Bisognin:
GaúchaZH não o encontrou. Conseguiu falar com Ronaldo Bonesso, que atuou como advogado de Bisognin no inquérito policial, a pedido do Banco do Brasil. "Como era colega dos bancários investigados, expliquei a função de cada um, como ocorrem empréstimos, a metodologia. Depois não acompanhei mais o processo", diz Bonesso.
O que diz Jonatan Teixeira, do escritório Siegmann Advogados, que representa nove servidores do Banco do Brasil punidos administrativamente:
"O inquérito que originou a denúncia decorre de processo administrativo disciplinar (PAD) com graves nulidades. Houve tratamento diferenciado entre os denunciados e nenhum diretor ou superintendente foi despedido pelo BB ou denunciado pelo MPF. Os acusados não tiveram nenhum benefício financeiro e as condutas relativas ao Pronaf sempre foram de conhecimento das instâncias superiores do BB. Até agora, a Justiça já determinou a reintegração de três gerentes, sendo que outros seis aguardam julgamento."
GaúchaZH não obteve retorno do advogado de Rafael Spalding Cavalli, Miguel Tedesco Wedy, nem da advogada de Vânia Emília Müller, Tatiana Fernanda Wagner.