Os 28ºC que marcam os termômetros em Santa Cruz do Sul não refletem as altas temperaturas registradas na sessão especial do Congresso Nacional, realizada na cidade do Vale do Rio Pardo, para investigar o golpe envolvendo o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
O encontro, que conta com presença de dois deputados federais e quatro estaduais, acontece no auditório da Faculdade Dom Alberto (ao lado da catedral do município) e foi marcado pelo bate-boca entre os que se dizem lesados e os que são acusados de envolvimento na fraude.
Os denunciantes dizem ter sido prejudicados pela Associação Santa-Cruzense dos Agricultores Camponeses (Aspac), entidade ligada ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e apontada pela PF como líder de um esquema fraudulento.
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Conforme o inquérito, a Aspac intermediava contratos dos filiados com o Banco do Brasil (BB), para obter financiamentos do Pronaf. O dinheiro liberado, em alguns casos, parava nas contas da própria associação, e parte seria repassada a contas particulares de dirigentes da entidade - sem que os agricultores soubessem. Muitos desses colonos, mesmo sem receber os financiamentos, ficaram endividados e seus nomes foram parar na Serasa (serviço de consulta de crédito usado pelos bancos), como devedores.
A PF rastreou 26 mil depósitos que passaram por 107 contas ligadas a dirigentes ou funcionários da Aspac. A suspeita é que grande parte dos R$ 79 milhões liberados pelo Pronaf entre 2006 e 2012 possam ter sido desviados. A suposta fraude atingiu Santa Cruz do Sul e outras cidades do Vale do Rio Pardo.
O auditório, que sedia hoje uma sessão das comissões especiais de Agricultura do Senado e da Câmara Federal para discutir a fraude, foi tomado por grupos opostos. De um lado, representantes do MPA, vestidos de vermelho e com bandeiras da sua entidade e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, matriz do MPA). De outro, agricultores que se desligaram do movimento e se dizem fraudados. Gritos e vaias de lado a lado marcaram a sessão.
Um dos agricultores que topou subir ao palco foi Edgar Rubin Woll, de Santa Cruz do Sul. Ele diz ter acertado financiamento do Pronaf, de R$ 15 mil, para comprar um trator usado. Em 25 de abril de 2012, foi ao Banco do Brasil e soube, por funcionários, que o dinheiro tinha entrado em sua conta - inclusive tirou extrato mostrando isso. Quando tentou sacar, o dinheiro não estava mais.
- Decidi cobrar do pessoal da Aspac e do gerente do banco. Eles disseram que era engano, que o dinheiro não tinha entrado na conta. Quando reclamei, me puseram para fora e sugeriram que eu procurasse meus direitos - reclama Woll, que ingressou com ação judicial por perdas materiais, contra o BB e a Aspac.
Ele conseguiu liminar para tirar seu nome da Serasa - do contrário, não conseguiria mais financiar a lavoura.
Woll foi confrontado por Wilson Rabuske, principal dirigente do MPA e que a PF aponta, em inquérito, como responsável pela fraude. Rabuske levou papéis ao palco, dizendo que Woll deve tudo que nega e que terá de pagar.
Foi discutida na sessão, também, a situação do casal M. e R., agricultores de Linha Eugênio, interior de Santa Cruz do Sul. Eles dizem que toda a família foi lesada no golpe do Pronaf, em mais de R$ 100 mil: o agricultor, sua mulher e um casal de filhos adultos. Todos tiraram financiamento, intermediado pela Aspac.
- Só recebi R$ 1 mil depois de muito reclamar, embora tenham tirado no meu nome um empréstimo de R$ 16 mil e outro de R$ 5 mil. O filho tirou R$ 36 mil e, quando não recebeu e soube que estava com nome no Serasa, tentou se matar. Ele não consegue emprego, porque tá na lista dos endividados em banco - diz M., que toma medicamentos para conseguir dormir.
O casal diz que reclamou para um vereador, ligado ao MPA e à Aspac, que prometeu ajuda. Até hoje esperam.
Rabuske contradisse o casal e falou que eles devem, sim, os Pronaf. O casal, que tinha feito a denúncia pela manhã na Câmara de Vereadores, saiu e disse que vai denunciar tudo na Polícia Federal.
Um dos depoimentos que provocou comoção foi o de Wilson Class, agricultor de Herveiras. Ele diz que muitas vezes empunhou a bandeira do MPA e agora quer que a entidade seja responsabilizada pelos R$ 37 mil em dívidas contraídas em seu nome - e que ele nega.
- Eu era agricultor, hoje trabalho de peão (empregado rural). Tive meu CPF trancado, não tenho dinheiro para comprar semente e nem óleo para o trator, nada... Minha filha teria direito ao FIES, é uma aluna estudiosa, mas não posso pagar porque meu nome está sujo nos bancos - reclamou e não foi contestado.
Vários agricultores deram depoimentos favoráveis a Wilson Rabuske, lembrando sua liderança na luta contra dívidas dos colonos com as fumageiras.
- Ele salvou a agricultura daqui. Se não fosse avalizar nossos empréstimos, estávamos falidos - resume Linus Wermuth, de Santa Cruz do Sul.
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Rabuske assegura que aquilo chamado de "fraude" pela PF se trata de uma grande confusão. Ele acredita que muitos agricultores se endividaram num ano, contraíram novos empréstimos no ano seguinte e não entenderam que isso acabaria em inadimplência.
Ele admitiu que era corriqueira uma prática considerada irregular pelo Banco do Brasil: o "mata-mata".
- É um empréstimo via Pronaf feito para quitar outro empréstimo. Não poderia, mas ajudamos a fazer isso para impedir que bons agricultores tivessem o nome no Serasa e não pudessem mais plantar - alega.
A audiência atraiu a Santa Cruz do Sul agricultores até de outras regiões do Estado. Um grupo de Amaral Ferrador (metade sul do Estado) compareceu para denunciar outro tipo de golpe envolvendo o Pronaf. São 76 agricultores que contraíram financiamentos e, junto com eles, pagaram seguros de vida. O pagamento foi feito para pessoas que eles dizem serem ligadas ao MPA e que intermediavam os empréstimos.
O problema é que o dinheiro dos seguros não foi repassado ao banco e, quando algumas viúvas tentaram receber valores relativos ao companheiro morto, descobriram que estavam sem cobertura securitária. Isso está em denúncia oferecida pelo promotor de Justiça Cláudio Rafael Morosin Rodrigues, de Encruzilhada do Sul, contra três pessoas que intermediavam os seguros do Pronaf em Amaral Ferrador. O número de lesados pode ser de 600, equivalente ao de seguros feitos.