A Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a recomendar o uso intermitente, ou sob demanda, da pílula para prevenir o HIV, até então só indicada para ser tomada todos os dias de forma contínua. A atualização das diretrizes da profilaxia pré-exposição ao HIV (Prep) foi anunciada na semana passada, em conferência sobre ciência do HIV (IAS) que aconteceu na Cidade do México.
Em nota, o Ministério da Saúde diz que a recomendação da OMS está em análise na área técnica. Afirma que serão avaliados critérios de eficácia, efetividade, segurança, aspectos logísticos e operacionais e, caso os resultados sejam benéficos, a medida poderá ser adotada no país.
Ou seja, no SUS, a terapia de prevenção ao HIV, composta pela associação dos antirretrovirais tenofovir e entricitabina, continua com uma pílula de uso diário. A eficácia do tratamento chega a quase 100%, o que o torna uma das principais apostas para conter o avanço da aids, sobretudo em grupos de maior risco.
A nova indicação da OMS, chamada de esquema 2+1+1, baseia-se no uso de duas pílulas entre duas e 24 horas antes de o sexo ocorrer. Após 24 horas da dose dupla, deve ser tomado outro comprimido e, por fim, mais uma pílula depois de 24 horas. Se as relações sexuais aconteceram por vários dias seguidos, a pessoa deve tomar um comprimido diariamente, até 48 horas após o último evento.
Em 2015, o estudo Ipergay, liderado pelo grupo do médico francês Jean-Michel Molina (Universidade de Paris), mostrou que o uso intermitente da Prep reduziu em 86% o risco de infecção pelo HIV entre gays e bissexuais masculinos, com efeito protetor semelhante ao da utilização diária da terapia.
Porém, a OMS reforça que a dosagem intermitente da Prep é uma opção só para alguns perfis de homens que fazem sexo com homens, como aqueles que transam com menos frequência ou que podem planejar o sexo com ao menos duas horas de antecedência.
Segundo a OMS, a Prep sob demanda não é recomendada a mulheres cisgênero (identificam-se com o gênero designado ao nascerem), transgênero, homens transgênero que fazem sexo vaginal ou homens que transam com mulheres. Para esses grupos, serão necessários mais estudos para avaliar, entre outras coisas, o impacto da medicação no trato genital feminino. O regime também não é adequado para pessoas com hepatite B crônica, afirma a agência da ONU.
Segundo Esper Kallas, professor titular do departamento de moléstias infecciosas da USP, o endosso da OMS ao novo esquema é ótimo, mas não se trata de substituir a indicação de uso contínuo da Prep:
— É uma opção a mais. Se está provado que o uso intermitente é uma medida efetiva, por que não oferecê-la para uma pessoa que tem relações sexuais esporádicas ou que resolve ter uma relação de risco no fim de semana?
O médico infectologista Caio Rosenthal diz que desde a publicação do estudo Ipergay já vinha adotando o uso off label (fora das indicações para aquele medicamento) da Prep intermitente para três pacientes gays soropositivos, com carga viral indetectável.
— Para aqueles que conseguem fazer sexo de forma programada, é uma opção cômoda e mais prática — explica Rosenthal.
Oportunidade para prevenção
Na opinião de Mario Scheffer, professor do departamento de medicina preventiva da USP, a nova abordagem aumenta as chances de prevenção do HIV, uma vez que a simplificação no uso da terapia pode levar à maior adesão.
No entanto, segundo ele, será preciso que a oferta de Prep seja ampliada nos serviços de saúde e que haja mais campanhas de comunicação dirigidas ao público a que ela se destina, informando-o sobre essa nova possibilidade.
— Temos visto um enorme desmonte nessa área, uma demora na incorporação de novas recomendações — diz.
Hoje a prevalência do vírus HIV na população brasileira em geral é de 0,4%. Entre gays e homens que fazem sexo com homens (HSH, termo usado para designar aqueles que não se identificam como gays), de 10,5%. Já entre transexuais o índice é de 31,2%.
Disponível no SUS desde janeiro de 2018, a Prep é usada mais por gays e HSH (82,7%). Outros 8% são mulheres cisgênero e 5,9% são homens cisgênero heterossexuais. Apenas 3,2% são mulheres transexuais e 0,2%, homens trans.
Ativistas dizem que muitas vezes o público trans desiste de comparecer ao serviço de saúde por sofrer preconceito. Eles defendem campanhas focadas nos travestis, homens trans e mulheres trans. Rosenthal lembra ainda que muitos profissionais de saúde não são treinados para o atendimento da população trans.
Críticos à Prep argumentam que o seu uso estimula o sexo sem camisinha, o que aumentaria a incidência de outras doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis. Mas uma revisão de 21 trabalhos, que somam 10 mil pacientes, concluiu que não houve aumento significativo no número de participantes que não usavam camisinha. Muitos já transavam sem proteção.