Todo mutuário da faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, que beneficia famílias de menor poder aquisitivo, é avisado: não pode vender ou alugar o apartamento a menos que quite todo o valor de imóvel. Mas em toda vistoria realizada pelo poder público aparecem casos de comercialização clandestina.
Foi o que aconteceu em três conjuntos habitacionais de Esteio, auditados pela prefeitura em 2015, onde a reportagem de GaúchaZH comprovou que as irregularidades seguem ocorrendo, ao visitar os locais na última terça-feira.
Há três anos, fiscais do município verificaram 35 casos de unidades revendidas ou alugadas no Residencial Quaraí (que tem 240 apartamentos no total). Nos condomínios Renascer I e II, que juntos reúnem 352 apartamentos, foram constatadas 41 situações ilegais. Os ocupantes irregulares foram intimados a desocupar os imóveis.
Durante a semana, GaúchaZH esteve nesses empreendimentos, no bairro São José. Bastaram alguns minutos de visita para atestar que as vendas ilegais continuam. No Quaraí, uma aposentada oferece o apartamento de dois quartos por cerca de R$ 100 mil, desde que o comprador assuma as prestações que faltam (cerca de três anos).
Promessa de transferência após contratos de gaveta
Sem saber que falava com repórteres, ela propõe um contrato de gaveta. No término dos pagamentos, se dispõe a quitar nominalmente o contrato com a Caixa Econômica Federal e, depois, repassar o imóvel para ser registrado pelo comprador.
Dois andares abaixo, um homem oferece o apartamento por R$ 120 mil, mobiliado. O comprador terá de assumir três anos de prestações. A única garantia também seria um contrato de gaveta, em cartório. Questionado sobre como o novo dono passará o imóvel para seu nome, já que o financiamento na Caixa é registrado para o mutuário, ele tenta tranquilizar o potencial comprador:
— Sou homem de palavra. Vou ficar por Esteio mesmo. A gente fica com o contato um do outro.
Um terceiro apartamento ofertado aos repórteres de GaúchaZH fica no Renascer II. Outra aposentada oferece o imóvel para troca, por uma casa. O comprador terá de terminar de pagar as prestações, assumindo a dívida. Tudo via contrato de gaveta. Ela abriu também possibilidade para venda, por R$ 70 mil. Faltariam apenas uns três meses de prestações com a Caixa.
Venda e aluguel ilegais continuam
A ocupação de imóveis por gente que não é credenciada é um problema que nasceu com o Minha Casa Minha Vida. Isso ocorre via revenda ou aluguel irregulares. Nas faixas 2 e 3 do programa, até é possível comercializar a residência ou transferir o financiamento, mas a locação é vetada. Já nos imóveis construídos com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial, destinados em condições especiais para família da faixa 1 (renda até R$ 1,8 mil), as restrições são maiores: é proibida venda e aluguel de apartamentos ou casas não quitados. Isso porque o governo subsidia até 90% do valor do imóvel e os mutuários podem pagar o restante em 10 anos com parcelas mensais entre R$ 80 e R$ 270.
A auditoria divulgada em 2017 pela Controladoria-Geral da União (CGU) nas faixas 2 e 3 apontou que 16,8% (177) dos 1.051 imóveis vistoriados não estavam ocupados por mutuários. Ou seja, tinham sido objeto de venda, aluguel ou cedência – nas últimas duas situações, maioria dos casos (138), desvirtuando a finalidade do programa.
Em 64,4% (114) desses empreendimentos repassados indevidamente os moradores eram inquilinos. Situação ilegal, já que, conforme a Caixa Econômica Federal, não é permitido o aluguel de imóveis do Minha Casa Minha Vida. Nos demais, os residentes compraram o imóvel irregularmente (contrato de gaveta) ou o tiveram cedido por familiares.
Auditoria da CGU aponta prejuízo a quem realmente precisa do auxílio
Na faixa 1, na qual é proibida inclusive a venda antes da quitação, em quase todos os condomínios foram encontradas unidades revendidas. No Rio Grande do Sul, foram fiscalizados 16 condomínios da modalidade, mas o relatório não detalha em quais as irregularidades foram identificadas e nem o percentual de comercialização ilegal.
A auditoria da CGU concluiu que “o programa acaba sofrendo com indevidos custos de oportunidade financeira e social, em virtude da destinação indevida de recursos a mutuários que não cumprem as regras do programa e pelo fato de impedir que mutuários com boa-fé tenham acesso a esses recursos financeiros, já que esses são limitados”.
O QUE DIZ A LEI
- Imóveis financiados na faixa 2 ou 3 não podem ser alugados enquanto o comprador estiver pagando o financiamento. Isso porque a finalidade do Minha Casa Minha Vida é a oferta de moradia própria. O artigo 7º da norma criadora do programa (Lei 11.977 de 2009) diz que, em caso de qualquer uso para finalidade diversa, será exigida a devolução ao erário.
- Outro ponto da mesma lei (§ 5º, inciso III, do art. 6º-A) diz que, nas operações realizadas com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), para famílias da faixa 1, “não se admite a transferência inter vivos de imóveis sem a respectiva quitação” do financiamento, que tem prazo de 10 anos. Para conclusão antecipada do financiamento, o mutuário deverá pagar o valor total do imóvel, sem a subvenção do FAR. Por exemplo, se imóvel custou R$ 60 mil e o beneficiário já pagou 50 parcelas de R$ 80 (R$ 4 mil), terá de desembolsar R$ 56 mil para liquidar o débito.
CONTRAPONTO
O que diz a Caixa Econômica Federal, por meio de nota
“Com relação à faixa 1 do Minha Casa Minha Vida, a Caixa esclarece que a comercialização (aluguel e venda) do imóvel do programa, sem a respectiva quitação, é nula e não tem valor legal. Quem vende (ou aluga) fica obrigado a restituir integralmente os subsídios recebidos e não participará de mais nenhum programa social com recursos federais. Essa condição é informada ao beneficiário por ocasião da assinatura do contrato. A Caixa não reconhece contrato de gaveta. Quando há denúncia do descumprimento desta regra, a Caixa notifica os moradores para que comprovem a ocupação regular do imóvel”. Em caso contrário, o banco “protocola notícia-crime na Polícia Federal e adota medidas judiciais cabíveis, no sentido de buscar a rescisão do contrato e a reintegração de posse do imóvel.” A seleção das famílias é competência exclusiva dos entes públicos (Estados e municípios).
DENUNCIE
O Programa Caixa de Olho na Qualidade tem o objetivo de atender aos beneficiários do Minha Casa Minha Vida. Há opção de denúncia de uso irregular, invasão, venda ou ociosidade. O telefone para ligação gratuita é 0800-721-6268.