Por dois votos a um, em meio ao choro e à indignação de familiares das vítimas, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) decidiu, nesta quarta-feira, que os quatro réus do processo principal da tragédia da boate Kiss irão ao Tribunal do Júri – mas por 242 homicídios simples e 636 tentativas de homicídio simples, e não mais qualificado (veja os detalhes mais abaixo). Os advogados de defesa devem recorrer.
O tipo de julgamento – no qual jurados da comunidade decidem se os réus são culpados ou inocentes – foi determinado em julho de 2016 pelo juiz Ulysses Louzada, de Santa Maria. Os defensores dos empresários Elissandro Spohr (Kiko) e Mauro Hoffmann, sócios da casa noturna, e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão, da banda Gurizada Fandangueira, recorreram da decisão.
Leia mais
Tragédia da boate Kiss: TJ decide nesta quarta-feira se acusados irão a júri
Pais de vítimas da Kiss pedem à presidente do STF mais agilidade da Justiça
Justiça decide na próxima semana se réus do Caso Kiss vão a júri popular
Aberta ao público, a sessão que analisou o recurso teve início por volta das 14h30min, em Porto Alegre. Por mais de três horas, a sala ficou lotada, e muita gente teve de acompanhar a discussão do lado de fora. A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria chegou ao local com cerca de 30 pessoas e espalhou cartazes em frente ao prédio do TJ.
A sessão começou com a manifestação dos advogados de defesa dos réus. Mário Cipriani, defensor de Hoffmann, disse ter certeza de que "o que aconteceu naquela casa noturna foi uma sucessão de irresponsabilidades, imprudências e negligências", mas que "os quatro jamais quiseram matar ninguém".
– Eles perderam amigos. Jamais imaginaram que isso pudesse acontecer - afirmou.
Em seguida, Jader Marques, advogado de Kiko, disse que a Kiss "era a concretização do sonho de um menino pobre". Erguendo a voz, ele questionou a falta de punição para o ex-prefeito Cezar Schirmer, para funcionários da prefeitura e representantes do Ministério Público (MP) e sustentou que os quatro acusados não agiram deliberadamente.
– Ora, aceitar o risco de matar 242 pessoas sorridentes, felizes que estavam? É um absurdo que o MP tenha oferecido uma denúncia com esse tipo de acusação. Pessoas erraram, sim, mas não queriam matar ninguém – disse ele.
Enquanto Marques falava, os parentes dos mortos no incêndio ficaram em silêncio, mas não contiveram as lágrimas. O clima ficou ainda mais pesado quando a procuradora de Justiça Irene Soares Quadros defendeu a tese de que houve "dolo eventual". Ou seja: para ela, os réus assumiram o risco de matar, mesmo que não quisessem esse desfecho.
– Senhores, uma casa de 600 metros quadrados cheia de gente, e eu não vou imaginar que pode pegar fogo? O mais dramático e o que mais dói é que a gurizada estava lá faceira, e os pais estavam em casa, tranquilos. O que se faz com quem brinca com fogo num ambiente fechado, sem extintor, sem saída, sem ar? Eu penso que o que se faz é a pronúncia (indicação ao júri), e o Tribunal do Júri vai nos responder – afirmou Irene.
O primeiro a proferir o voto foi o relator do caso, desembargador Manuel Martinez Lucas. Com parte dos presentes de pé, ele citou inúmeros problemas na casa noturna, mas disse, para desespero dos pais e mães presentes, não ter identificado a intenção de matar nem o "consentimento com as mortes":
– Penso que todas essas circunstâncias constituem indício de culpa dos acusados, mas não caracterizam dolo eventual. Da mesma forma, a prova produzida e reproduzida também não aponta para uma conduta dolosa por parte dos acusados.
Na sequência, o desembargador Jayme Weingartner Neto divergiu do relator e votou pela manutenção da decisão inicial, do juiz de Santa Maria, alegando ter "convicção" de que o caso deve ser levado ao escrutínio popular.
O voto de Minerva foi do presidente da 1ª Câmara, Sylvio Baptista Neto. De forma sucinta, ele concluiu que há indícios tanto de "culpa consciente" quanto de "dolo eventual" e que, por isso mesmo, caberá ao júri definir.
O resultado foi comemorado pelos familiares das vítimas com abraços e apertos de mão misturados a choro e indignação.
– Foram quatro anos de sofrimento. Hoje foi o primeiro passo para a vitória. Agora é continuar a luta – destacou Flávio Silva, vice-presidente da associação.
Ao deixar o local, Jader Marques disse que vai conversar com Kiko para avaliar se irá recorrer. Já Cipriani adiantou que, assim que a decisão for publicada, entrará com recurso no próprio TJ e no Superior Tribunal de Justiça.
– Houve divergência nos votos, o que, por si só, já abre espaço para questionamentos – resumiu Cipriani.
O que mudou
Embora a maioria dos desembargadores tenha votado para que o julgamento dos quatro réus ocorra no Tribunal do Júri, eles optaram por retirar as chamadas qualificadoras. Inicialmente, os quatro eram acusados de homicídio duplamente qualificado (242 vezes consumado e 636 vezes tentado), por motivo torpe (ganância) e meio cruel (fogo e asfixia). Com a mudança, passam a ser acusados de homicídio simples. Na prática, isso significa atenuação da pena dos réus, caso eles sejam condenados. Inicialmente, a pena seria entre 12 e 30 anos. Agora, pode ficar entre seis e 20 anos. O Ministério Público estuda recorrer.
O que acontece agora
- Nos próximos dias será publicado o acórdão, que é a decisão dos desembargadores.
- A partir daí, os advogados de defesa terão prazo de 10 dias para entrar com embargos infringentes, um tipo de recurso que permite questionar divergências na decisão.
- Caso se confirmar, o embargo será analisado por um grupo formado por desembargadores integrantes da 1ª e da 2ª Câmara Criminal do TJ. Não há prazo para entrar em pauta.
- Ao mesmo tempo, abre-se também prazo de 15 dias para outros tipos de recursos, tanto junto ao Superior Tribunal de Justiça (recurso especial) quanto ao Supremo Tribunal Federal (recurso extraordinário).
- É necessário que esses recursos sejam admitidos, primeiro, pela 2ª Vice-Presidência do TJ. Isso vale tanto para as defesas quanto para o Ministério Público.
- É difícil prever quanto tempo levará para ocorrer o júri, porque tudo vai depender do tempo de análise dos recursos e dos resultados. Pode levar anos.