Procurado por crimes durante a ditadura argentina (1976 a 1983), o ex-delegado federal portenho Roberto Oscar González, 65 anos, foi preso em julho do ano passado, na zona rural de Viamão, na Grande Porto Alegre. No final de março, González obteve o direito, concedido pelo Supremo Tribunal Federal, de aguardar em casa, monitorado por uma tornozeleira, o processo de extradição que vai ser julgado pelo STF nos próximos dois ou três anos.
Os advogados de González, Rodrigo Mariano da Rocha e Guilherme de Mattos Fontes, querem evitar a extradição. Uma das razões está baseada em tratado, assinado por Brasil e Argentina, em 1961, que impede a transferência do acusado para o outro país se os crimes estiverem prescritos (mais de 20 anos).
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Antes de ser preso, González morava havia 10 anos em Viamão como um pacato agricultor. Nos últimos tempos, dedicava-se a cuidar do colega Pedro Osvaldo Salvia, 63 anos – também policial e acusado de crimes na ditadura argentina. Salvia estava doente e morreu dias antes da prisão do amigo. O corpo segue até hoje no Departamento Médico Legal.
González ficou nove meses na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas, onde, por algum tempo, dividiu cela com o médico Leandro Boldrini, réu por participação no morte do filho Bernardo, 11 anos. De volta para casa, onde mora sozinho, o ex-delegado aceitou contar sua versão sobre alguns fatos.
González garante que estava trabalhando no Rio Grande do Sul, em 2005, quando a anistia aos militares argentinos foi revogada e decretada sua prisão. Afirma que cumpriu seu dever como policial e que nunca ocultou seus atos. Inclusive revelou o que sabia em depoimento à comissão da verdade argentina, o que depois serviu de munição em processo contra ele.
De acordo com o argentino, foram 7 mil desparecimentos durante a repressão, e não 30 mil, como reiteradamente é divulgado. Garante que o grupo de repressores ao qual pertenceu não teve participação na morte do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Junior, o Tenorinho, em Buenos Aires, em 18 de março de 1976. Segundo ele, o grupo só foi constituído após o golpe militar, em 24 de março.
González afirma que não participou de sessões de torturas na Escola de Mecânica Armada (Esma). Admite que matou “mais de uma centena de pessoas em confrontos de rua”, ao combater o terrorismo por ordem das forças armadas e em defesa da pátria. Contesta participação na morte do jornalista e escritor Rodolfo Walsh, intelectual ligado ao grupo guerrilheiro Montoneros, autor de uma carta aberta, na qual revelou ao mundo, em março de 1977, violações, sequestros e assassinatos cometidos pelo regime militar. Acusado formalmente pela morte de Walsh, González nega o crime, mas lamenta não ter sido o autor dos tiros. A seguir, trechos da entrevista concedida na casa dele, na segunda semana de abril.
Confira abaixo a entrevista:
O senhor é acusado de centenas de mortes na Argentina. É responsável por essas mortes?
De mortes, sim. De homicídios dolosos, não. Quando as forças armadas tomaram o controle operacional na Argentina contra o terrorismo, fui destacado para trabalhar como policial federal. Combatia terroristas que atentavam contra a pátria, que cometiam atentados. Matavam civis, políticos, militares, todos que opunham seu pensamento. Jurei defender minha bandeira. Cumpri meu dever como foi mandado. Não me sinto como um criminoso.
Acontecia tortura?
No setor de inteligência, pode ter ocorrido, sim. Mas eu não participava deste setor. Prendia pessoas na rua. Matei muita gente em enfrentamentos. Só em enfrentamentos.
Quantas pessoas o senhor matou durante a repressão?
Pode ser bem mais de uma centena. O grupo de tarefa prendeu quase 1,2 mil pessoas. Imputam ao grupo 5 mil, mas não foi tanto assim.
Quanto tempo ficou no grupo?
De 12 de julho de 1976 a 23 de novembro de 1978. Em uma noite, cheguei a ter cinco enfrentamentos. Tenho ferimento de bala na perna esquerda e ferimento de uma bomba caseira na perna direita.
O senhor é acusado da morte do jornalista Rodolfo Walsh, um expoente dos Montoneros?
Walsh era chefe da inteligência dos Montoneros. Pensava todos os atentados com explosivos na Argentina.
Como ele morreu?
Foi encontrar outro montonero e estava sendo monitorado pela polícia. Ele sacou uma arma e disparou contra um policial, que revidou e o abateu. Walsh morreu ali. Neste procedimento, eu estava no grupo que fazia o cerco, cuidando o perímetro.
O senhor não teve participação direta na morte dele?
Não, lamentavelmente. Gostaria de ter abatido Rodolfo Walsh.
Quando o senhor deixou as atividades policiais?
Me aposentaram porque, politicamente, me consideraram incorreto, em 1991.
Recebia salários?
Sim.
E quando deixaram de pagar?
A partir de 2007, porque o governo da Argentina considerou que, se seguisse recebendo, estariam sustentando o terrorismo. Pela lei antiterrorismo internacional, deixou de me pagar o salário.
Quando decretaram sua prisão, estava no Brasil?
Trabalhava negociando banana e feijão, viajando entre a Argentina e Santa Catarina. Quando decretaram a prisão estava aqui, era 2005, e fiquei aqui.
O senhor acredita que ficará no Brasil?
Se for feita justiça, fico.
Na Argentina, o senhor seria julgado e condenado?
Se for, sei que já estou condenado. É um jogo de cartas marcadas.
E qual a pena?
Morrer. Tenho 65 anos. Se não me derem prisão perpétua, darão 30 anos de prisão.
Sem salário, como vive?
Planto alho poró, alho, rúcula, cebola e faço bicos na oficina no vizinho (montagem de touro sob rodas). Pago aluguel, vivo com menos de R$ 1 mil por mês.