Ao anunciar na sexta-feira a adesão à campanha de Donald Trump, seu exrival na disputa pela vaga de candidato Ben Carson fez uma afirmação que colide com o discurso e a imagem do bilionário nova-iorquino, mas pode ser a chave para a pacificação do Partido Republicano caso ele chegue à Casa Branca.
– Há dois Donald Trump: o que se vê no palco, e o outro, muito cerebral, com quem se pode ter uma boa conversa.
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Cauteloso, o próprio Trump referiu-se depois ao raciocínio de Carson para desdizê-lo:
– Provavelmente, há dois Donald Trump: a versão pública que a gente vê, provavelmente diferente do Donald Trump privado. Não acho que haja dois Donald Trump. Sou um pensador, sempre fui um pensador.
Os eleitores republicanos que estão a ponto de sagrar Trump não têm dúvida de que o candidato é uno e indivisível: partidário de mais empregos, menos migração e mais dureza com eventuais inimigos externos. Até julho, quando o partido celebra sua convenção, o magnata não pretende mais debater com os adversários remanescentes ("Vou ser franco. É hora de acabar com os debates"). Será mais difícil, portanto, compreender exatamente quais são suas ideias e planos. Ainda assim, a temporada de especulação sobre as feições de um eventual governo Trump está aberta desde o final do ano passado.
Se Carson estiver certo, o Trump nº 2, "com quem se pode conversar", terá como primeiro desafio reconstruir as pontes com a cúpula republicana. Desde o início da campanha, Trump se mostrou capaz de recompor laços. Em novembro, ele havia dito que Carson tinha "têmpera patológica" e que Christie jamais venceria as primárias em razão de sua baixa popularidade como governador de New Jersey. Nos últimos 30 dias, ambos endossaram sua candidatura.
De parte da elite partidária, há sinais de conciliação. O presidente do Comitê Nacional Republicano, Reince Priebus, afirmou na quinta-feira que o vencedor na convenção nacional de julho será apoiado em "100%" pelo partido. Por outro lado, lembrou, setores anti-Trump continuaram angariando fundos e patrocinando propaganda negativa.
Tudo indica que o decisivo na relação entre Trump e os republicanos será a direção política de seu governo. Antes do início da campanha, ele havia defendido o sistema de acesso universal à saúde do Canadá, aumento de impostos para os ricos e a performance de Hillary Clinton no Departamento de Estado. Como candidato, propôs a deportação de 11 milhões de migrantes sem documentos para, em seguida, desconversar ao ser cobrado por detalhes a respeito da situação das crianças ("Elas estão com seus pais, isso depende"). Há 15 anos, defendeu a cobertura total à saúde, e, confrontado com a citação em agosto passado, justificou-se dizendo que "na época não tínhamos a dificuldade que temos agora com o Obamacare" – colocar fim à lei de 2010 que garante acesso de necessitados a medicamentos e planos de saúde é compromisso republicano.
– Não há realmente nada lá. Não há uma política de Donald Trump – diz o estrategista republicano Rick Wilson.
Se as medidas domésticas são um mistério, na política externa o bilionário é ainda mais enigmático. Ele promete erguer um muro para conter a migração ilegal mexicana, proibir muçulmanos de ingressar no país, adotar uma política comercial de confronto com a China e obrigar a Alemanha a lidar com crises na Europa, incluindo a Ucrânia. Reações não tardaram. O ex-presidente mexicano Vicente Fox disse que seu país não pagará pelo "maldito muro". O Parlamento Britânico discutiu petição para que Trump fosse proibido de entrar no país por seus ataques aos muçulmanos ("bufão", "demagogo" e "idiota" foram adjetivos endereçados ao candidato, mas a petição foi rejeitada).
Analistas sugerem que os raros republicanos a aderir a Trump até agora teriam grandes chances de ser recompensados com cargos em uma eventual administração do nova-iorquino. Entre eles, há personalidades como a ex-candidata a vice-presidente Sarah Palin ("Trump irá chutar a bunda do Estado Islâmico"), o governador do Maine, Paul LePage, e o senador pelo Alabama Jeff Sessions. O próprio candidato já cogitou encarregar o megaempresário Carl Ichan da pasta do Tesouro ou das negociações com a China.
Até o agora, porém, a simpatia por Trump só tem disparado na parte de baixo da pirâmide partidária.